Primeiro de Maio, de luta e luto
por Pedro Ortiz
“Sejamos realistas, peçamos o impossível”. Essa frase emblemática e ousadamente utópica sintetizou bem o espírito das revoltas estudantis que eclodiram na França em maio de 1968 a partir das universidades de Paris-Nanterre e Sorbonne, depois se espalhando pelos país, conseguindo a adesão e simpatia de sindicalistas, intelectuais, organizações populares, estudantes secundaristas e outros segmentos da sociedade. A oposição à Guerra do Vietnã, a luta por reformas na educação, os direitos humanos em sentido amplo, das mulheres, dos trabalhadores, a liberdade sexual foram bandeiras do movimento, que sofreu forte repressão das forças do aparato de segurança e culminou com uma greve geral que paralisou o país, abalando as estruturas do poder e levando, no ano seguinte, à renúncia do presidente De Gaulle.
Não foi, porém, uma revolução nos moldes clássicos, não houve mudança radical no sistema de governo, nas eleições seguintes os mesmos ocupantes do poder assim permaneceram. Mas as “barricadas” e marchas dos jovens franceses inspiraram mudanças culturais importantes e contribuíram para outras formas de pensar e agir nos conturbados, criativos e instigantes anos 60 e nas décadas seguintes. E também estiveram presentes de alguma maneira naquele mesmo ano de 1968 nas mobilizações estudantis e de vários segmentos sociais nos Estados Unidos, na luta pelos direitos civis, na Primavera de Praga sufocada pelos tanques soviéticos, no massacre da Plaza de las Tres Culturas em Tlatelolco, na Cidade do México, nas passeatas e na resistência à ditadura institucionalizada pelo AI-5 no Brasil, entre tantas outras revoltas ao redor do mundo. E irrigaram manifestações artísticas e a criatividade na música, no cinema, no teatro, nas artes em geral, em novas formas de atuação política e social. E lá se vão 50 anos desse ano que não terminou.
O primeiro de maio, dia historicamente voltado para as lutas e reivindicações da classe trabalhadora em muitos países, também nos remete a uma reflexão sobre o que temos hoje daquele legado de tantas utopias e esperanças, de sonhos e de possibilidades que, nas impossibilidades do cotidiano, não morreram, mas sofreram duros golpes em vários campos, da política tradicional, dos arranjos econômicos, das conquistas sociais e da cultura.
Um primeiro de maio que veio agora com gosto amargo de derrota e de tragédia, seja nos retrocessos da legislação trabalhista e nos direitos humanos fundamentais que vão sofrendo ataques diários ou no luto, na indignação e dor do incêndio e desmoronamento do edifício no centro da maior cidade do país, onde centenas de famílias perderam tudo, vidas, amigos, parentes, os poucos utensílios domésticos e roupas do cotidiano precário de quem busca alguma dignidade ainda.
Descaso, omissão dos poderes públicos nas três esferas, um nefasto jogo de “empurra” das responsabilidades devidas e não cumpridas, preconceito, invisibilidade social, manipulações diversas. Mas também a solidariedade anônima dos que se mobilizam com afeto e ações concretas, para tentar confortar no calor de um abraço ou um gesto simples quem está à margem da margem, em uma sociedade que ainda não consegue lidar totalmente de frente com a diferença, a tolerância e a convivência de outras formas de pensar, agir e viver que não sejam as pré-estabelecidas ou tidas como “padrão”.
Precisamos urgentemente de outros maios, outras primaveras, que abalem estruturas e arejem as consciências, que transformem, ainda que pouco a pouco, num ritmo sempre mais lento que as urgências cotidianas, os modos de pensar as cidades e a vida de milhões de seres humanos nelas, o convívio com outras vidas não humanas também, os animais, as plantas, as forças e elementos da natureza, muito maiores que qualquer possível civilização. Mais que nunca, é necessário criatividade e utopia, no plano real e imaginário. Desprendimento, ousadia, solidariedade, tolerância, paz e amor. “É proibido proibir” ainda está valendo, cinquenta anos depois.
Foto: Ricardo Alves