Para onde vamos?
por Pedro Ortiz
A liberdade de locomoção é um direito fundamental, garantido pelo artigo 5º da Constituição Federal brasileira, de 1988. Mas nas últimas semanas, esse direito ficou travado, bloqueado, congestionado ou mesmo saiu de circulação em praticamente todo o país, com a greve dos caminhoneiros e seus desdobramentos e consequências que nos afetaram a todos, em maior ou menor grau.
As reivindicações dos caminhoneiros, categoria que representa segundo algumas fontes, mais de 1,2 milhão de trabalhadores, são justas, pertinentes e há muito vinham sendo vocalizadas de diversas formas. Ainda assim, impedir que o livre direito de ir e vir dos cidadãos seja cerceado, unilateralmente e com graus variados de violência, não chega a ser um bom exemplo de atitude cidadã.
Muitos pontos de vista conflitam, convergem ou divergem sobre essa questão, que é complexa, polêmica e talvez nunca vá ser totalmente consensual. Os caminhoneiros, nas suas várias categorias e divisões, representações, autônomos ou empregados, merecem mais respeito e ouvidos menos “moucos” por parte do poder público em vários níveis e de boa parte dos empresários do setor de logística e transporte de cargas. Tantas outras categorias profissionais e a sociedade em geral, também merecem mais respeito e consideração.
Há mais de seis décadas, os dirigentes do país, com apoio e “lobbies” de diversos segmentos como a indústria automobilística e as empreiteiras de obras de infraestrutura optaram por priorizar como modal de transporte de cargas o rodoviário. Isso, desmantelando e literalmente enterrando uma malha ferroviária que, desde o início do século XX, vinha crescendo e interligando regiões importantes e em franco desenvolvimento, transportando a produção agrícola para os grandes centros e portos, levando passageiros pelo Brasil afora.
Hoje, mais de 75% da distribuição de insumos e produtos industrializados é feita por caminhões e carretas pelas rodovias brasileiras, muitas em condições precárias ou intransitáveis e outras, privatizadas, com pedágios altíssimos. A atual política de preços de combustíveis praticada pela Petrobras e as refinarias/distribuidoras privadas/multinacionais, atrelada ao mercado internacional e as flutuações do preço do barril de petróleo em dólares, mais a redução dos valores de fretes, aumento dos outros insumos além dos combustíveis, geram uma somatória perversa e uma conta que não fecha para os caminhoneiros. Que decidiram, estrategicamente, parar o país.
Mesmo com a pertinência e legitimidade das reivindicações, não podemos deixar de enxergar alguns elementos um tanto estranhos nessas manifestações de indignação com a situação geral. Clamar por uma intervenção militar é demonstração de ignorância em relação ao processo histórico, além de inconstitucional e total falta de bom senso. Ainda que imperfeita e com muitos pontos a serem aprimorados, conquistados, a democracia é imensamente superior a qualquer regime totalitário. E a parcela significativa da sociedade (e também em outros países) que lutou/lutamos para a superação das ditaduras, sabe o valor que isso tem.
Se hoje estamos nesse momento de perplexidade geral, com muitas dúvidas e incertezas sobre o presente e o futuro, é importante fazermos, individual e coletivamente, uma autocrítica sincera. E pensarmos, que projeto de país queremos? Se instituições em todos os níveis estão desgastadas e carecem de credibilidade, nas várias esferas do poder, porque não repensá-las, resgatando seu papel e, com inteligência e criatividade, propormos novas formas de atuação política cidadã? Há exemplos interessantes em curso.
Para onde vamos (se vamos)? Sofremos um governo fraco e carente de legitimidade, errante e que tem dificuldades em negociar, como interlocutor e articulador de saídas políticas viáveis ou na elaboração de um novo pacto de governança. Partidos tradicionais, sindicatos, movimentos e muitas outras instituições e setores da sociedade também carecem de criatividade e capacidade de reinvenção nesse momento delicado da nossa história como nação e povo.
Com tantas crises de várias origens e dimensões não só aqui, mas rondando o planeta, ameaças de graus variados, intolerâncias, retrocessos políticos, culturais, sociais, ambientais, comportamentais e por aí afora, a leitura das manchetes diárias me traz uma sensação mista de revolta e ironia, e há tempos costumo dizer que o futuro da humanidade parece “Blade Runner”, mas o presente está mais para “Mad Max”.
Se queremos que essas referências continuem no nosso imaginário como excelentes obras de ficção científica, cabe a cada um de nós assumir as responsabilidades e pró-atividade em busca de alternativas viáveis, que não serão construídas num passe de mágica ou recorrendo a salvacionismos sem saída. É um processo lento, diário, persistente, um aprendizado. Não há fórmulas, nem caminhos pavimentados. Ainda bem!
“Caminante no hay camino, se hace camino al andar” (Antonio Machado/Joan Manuel Serrat).
PD: minha sincera e afetuosa homenagem ao mestre de todos nós, o grande jornalista e democrata Audálio Dantas.
https://www.youtube.com/watch?v=vIEUWDYVpHg
Foto: Tomaz Silva/Ag.Brasil – Fotos Públicas