O PALHAÇO (SELTON MELLO, 2011)
por Ana Maria M González
“Respeitável público, começa agora o maior espetáculo de circo na cidade.” Abre-se assim a sessão do circo Esperança. O filme de Selton Mello é um conto de fé na vida.
Este filme é propício a boas intenções! Que o ano de 2019 lhe possibilite realizações de acordo com seus mais íntimos desejos.
O CIRCO E A POESIA
Benjamim, filho, (Selton Mello) e Valdemar, pai, (Paulo José) formam uma dupla de palhaços Pangaré e Puro Sangue. O filho em crise de identidade decide deixar o circo e sai à cidade em busca de novos caminhos. Esta é a base do filme. Mas ele é cheio de detalhes e de símbolos.
A maneira como a história é contada faz a diferença. Silhuetas atrás dos panos, cenas estáticas com efeitos de intensidade e de reflexão, sorrisos e risadas, efeitos de luz, cores nas fantasias. E realidade também, permeada por delicadeza, crítica e senso de humor.
O circo é composto por um grupo que funciona como uma família, que anda pelas estradas de um Brasil com jeito mineiro, mas que pode ser de qualquer região. Cortadores de cana, poeira, velharias. Assim como não se sabe a região, também não se pode delimitar ao certo qual é a época, qualquer uma entre a década de 50 e a atualidade. Essa falta de contexto facilita nossa imersão no mundo da magia.
Os diálogos e outros aspectos seguem um modelo econômico, pois são as imagens que conduzem a narrativa. Tudo sem desperdício, com um máximo de significados em um mínimo de efeitos. Por isso, é necessário atenção, pois a beleza está em cada detalhe, em um lenço dado de presente a Benjamin ou um jeito no cabelo ao espelho, ou uma carona de moto em uma estrada poeirenta.
Tudo o que a cidade oferece se mistura com criatividade e improvisação no palco. Informações coletadas tais como suas figuras representativas e de notoriedade social, alimentam as cenas para o público do circo que acaba assistindo a sua própria história. O circo contando como a vida é com detalhes de rudeza e de verdade. Espelho.
Não faltam os chavões da vida urbana: a necessidade de documentos de identidade, alvarás de funcionamento, gravata e emprego. Outros chavões nos lembram que o espetáculo é um aparte apenas de uma realidade mais complexa, da qual o circo também não está livre. Então, há sutiãs cujas alças se rompem, tias e avós que adoecem às dúzias em mentiras deslavadas, carros que quebram, enganos e traições que partem corações.
No meio desses dois contextos que se tocam de leve (o prosaico da vida urbana e a arte do circo), temos a natureza humana com sua generosidade e mesquinhez, a malandragem e a nobreza, a corrupção e a infidelidade. Nesses dois mundos, os princípios éticos e morais podem ser móveis e relativos.
O ventilador surge várias vezes, abrindo uma janela na percepção da realidade, conduzindo Benjamim a outra dimensão. Difícil fechar uma interpretação única para esse objeto que, além de alívio para o calor, ganha conotação de símbolo. Seria um acelerador de percepção? Quando ele aparece, há outra música no ar. Que mais ele pode representar?
Há uma relação entre duas realidades sociais, objetos e situações surpreendentes, crises nas relações pessoais. Tudo colabora para a construção de um desarranjo que se instala na história.
Mas, depois disso, uma nova ordem põe tudo no lugar. A máxima que reordena tudo corretamente descreve uma disciplina natural: “O gato bebe leite, o rato come queijo, eu sou palhaço. Cada um deve fazer o que sabe fazer.”
Dessa forma, também Benjamim, a partir de algumas experiências, descobre uma nova e ordenada visão de sua vida. Desta vez, ele está com o ventilador no seu colo, como o objeto que lhe dará conforto. Agora ele sabe que faz o povo rir e, de novo, pode rir.
E antes que o circo volte a andar, seguindo seu caminho, com as coisas ajeitadas de forma harmoniosa, assistimos à criança, que é a personificação da esperança percorrendo os caminhos de sua pequena aldeia, brincando com todos, sendo longamente cumprimentada e festejada. O circo está em paz novamente.
Difícil esgotar a análise dos elementos dessa linda obra que o diretor Selton Mello construiu. Muitos detalhes ficaram ainda a ser desdobrados, com certeza.
Que você se permita a ousadia de ir mais longe, de descobrir mais, impregnando-se de sua poesia.