O LADO SELVAGEM DE NOSSA NATUREZA HUMANA
por Ana Maria M González
No filme RELATOS SELVAGENS acompanhamos histórias ligadas entre si por um fio: o lado selvagem da natureza humana. Uma belíssima seleção de fotos de animais serve de pano de fundo para a apresentação dos informes iniciais do filme e não é por acaso. Tais relatos apresentam complexidades, riqueza de detalhes, muita ironia e surpresas que nos desconcertam. Venha comigo sem preconceito e sem medo.
UMA HISTÓRIA E MAIS CINCO
Com direção de Damián Szifron, esse filme de 2014, premiado com o Oscar de Filme Internacional de 2015, nos traz seis histórias que falam do lado animal de nossa natureza. Encontramos nelas o cômico e o trágico, talvez um sinal da escola espanhola de humor. Mas tudo isso é só artifício. Pelo absurdo, algumas situações são quase caricaturas. Dizem outra coisa, às avessas, mais do que parece.
Antes da apresentação do filme, temos a primeira delas: uma vingança junta todos os personagens em uma viagem de avião com destino para a morte. Outras duas pessoas em terra (supostamente os pais do culpado) também são atingidas. A narrativa é curta e, sob susto, nos prepara para o que vem em seguida.
Daí em diante, assistimos a uma série de situações em que as emoções de raiva, frustração e impotência ultrapassam os limites do bom senso sempre com o mesmo humor ácido e clima de surpresas.
A primeira nos conta acerca de duas funcionárias de uma lanchonete que se deparam com um passado incompleto até que uma delas se encarrega de finalizar o acerto. Para ela, estar na prisão significa estar a salvo dos males com que não pode pactuar. Foi fácil ter a decisão e a faca nas mãos.
A segunda nos mostra dois motoristas em uma estrada e uma fala impensada que conduz os dois a acessos de fúria, cada um à sua vez. Ambos morrem carbonizados. Final absurdo? Sem dúvida. Mas isso não seria possível?
No terceiro episódio, um engenheiro especialista em implosões se depara com questões urbanas e burocráticas. Sob pressões, vive reveses pessoais e profissionais e é preso. Acaba ganhando o papel de herói, por servir de porta-voz à coletividade, que é mobilizada pelas redes sociais em suas demandas reprimidas. A criação de um anti-herói restaura a moral de todos os que se consideram injustiçados pela máquina do Estado.
No quarto, o filho de uma família rica se envolve em um atropelamento com morte e daí em diante assistimos ao desenvolvimento de uma rede de corrupção. Mas, quem paga a conta é o elo mais fraco do sistema social. De todas, é a história menos cômica.
E a última história nos fala de traição, de hipocrisia social e da família com seus trejeitos. Uma festa de casamento é o local ideal para o desmascaramento destas questões e ainda assistimos a um happy end insuspeitado.
Tudo é forjado na linguagem de cinema. Todos os detalhes são intencionais. Significam, como em todo o tipo de grande arte. Quais seriam os objetivos do diretor do filme?
NOSSO LADO ANIMAL À TONA
Em todas as histórias, ocorre um comportamento possível da natureza humana em situações de pressão: a ultrapassagem de um limite. Os critérios de convivência social são perdidos e/ou abandonados. As estruturas que sustentam tal convivência se rompem. O que poderíamos chamar de racionalidade, sai da órbita de controle. E chegamos a um espaço de intensidade além dos limites possíveis ao ego.
E descobre-se o que está mais além, o lado irracional, o instintivo ou o amoral que nos habita além das convenções sociais. Esse lado escondido da natureza humana é revelado de forma trágica e cômica, às vezes beirando o absurdo.
Onde se pode chegar em uma situação de pressão? Em três histórias o limite é a morte. Há toques de humor que não diminuem o impacto e a violência mais ou menos explícita que elas promovem. Em duas delas há um suposto final feliz e em paralelo, ironia. O amor vencerá a hipocrisia na história do casamento? A consagração do anti-herói na coletividade eliminará a repetição da insatisfação deflagradora da história? Na verdade, a resolução um tanto patética dos conflitos promove abrandamento do clima na narrativa. Um tostão de alívio.
A partir desses relatos, refletimos sobre as possibilidades de rompimento dos critérios de convivência social. Qual é a solução para esses perigos que nos rondam e que nos trazem sensações de impotência, de injustiça e de raiva? Estamos sempre à beira do descontrole e da perda de consciência.
O recado pode ser esse: na convivência social a sanidade e loucura andam lado a lado, separadas por um fio. Pelas pressões a que estamos sujeitos na vida estamos próximos de uma ordem sem moral sob o comando da parte instintiva de nossa natureza.
Lúcido e desconcertante, o filme nos faz pensar a respeito de temas presentes em nossas vidas: a vingança e a injustiça, os comportamentos reles e os preconceitos sociais, o indivíduo e a máquina do Estado, a corrupção nas sociedades privada e pública, as relações entre os sexos e a família. E revela uma parte de nossa natureza pronta a explodir perante situações como essas. Quem de nós estaria a salvo de uma cobrança como a da apresentação do filme, vítimas ou culpados? Quantos débitos temos pendurados do passado?
E neste ponto, voltamos à belíssima seleção de fotos de animais que serve de pano de fundo para a apresentação dos informes iniciais do filme. Tais animais são nossos cúmplices, o espelho daquela parte de nós que escondemos ou preferimos não revelar. Um lado perigoso e animal da natureza humana mas, presente, escondido, o tempo todo e pronto para eclodir em muitas situações. O filme serve de alerta em relação a esse lado de nós todos.