O caos, um convidado inesperado
por Ana Maria M González
Uma festa de comemoração se transforma em uma sequência de emoções descontroladas. Eis a revelação de complexidades da natureza humana pela mão da diretora e mestre Sally Potter.
O CAOS, UM CONVIDADO INESPERADO
O filme A FESTA (THE PARTY) de 2017, da diretora Sally Potter, apresenta Janet esperando alguns amigos para comemorar o cargo conquistado de Ministra da Saúde. Algo não funciona. A festa é desmontada pouco a pouco pelas revelações que fazem vir à tona camadas e camadas cada vez mais profundas de emoções.
Antes mesmo dos primeiros letreiros de apresentação do filme, Janet, a dona da casa, aponta uma arma. Nós que estamos na mira dessa arma, estamos no lugar de quem? A estratégia de suspense torna esse filme curto de apenas 71 minutos, perfeito para as intenções da diretora. Poucas personagens, cenário teatral, em P&B. Sem preâmbulos, a narrativa já indica nessa primeira cena algo terrível: a possibilidade de tiro e de morte. Espera aí! O que está acontecendo?
Logo no início da festa, a notícia da gestação de Martha e Jinny, por inseminação artificial, parece ter atropelado a verdadeira celebração do dia. A correção pouco simpática vem de April que derrete a alegria das futuras mamães e de todos. Sim, o motivo da reunião é a conquista do cargo de Janet.
Mas, logo depois, outro comunicado inesperado. O intelectual ateu Bill revela o estado terminal de sua doença. A esposa Janet se desespera. Mas para piorar a situação, Bill declara outros planos. Prefere ficar com Marianne, esposa de Tom.
Entendemos então os motivos pelos quais Tom, um investidor do mercado financeiro, estava tão transtornado. Sua ida ao banheiro, a cocaína e ansiedade nos deixava em suspense por tanto descontrole. Na verdade, mais cedo, ele tinha sabido que sua esposa era amante de Bill.
O relacionamento entre Martha e Jinny passa por momentos de tensão. Há cobranças por ações do passado e aspectos do feminismo. Os homens não são nossos inimigos, diz Martha perante o radicalismo de Jinny. E ela também explica: Não esqueci do juramento do casamento, apenas estou com medo.
Por outro lado, a ajuda que Gottfried, marido de April, coach e curador espiritual tenta dar a Tom e Bill complica a situação e não impede agressão física pelo marido traído, remorsos e pedido de perdão.
Marianne, esposa de Tom e subordinada de Janet, o pivô dessa situação só chegará mais tarde. Mas, enquanto não chega, assistimos a um desfile de descobertas inesperadas e crises em todas as parcerias. Traições, raivas, frustrações. Declarações contundentes de verdades e mentiras.
Em meio a esse transbordar de emoções, há uma de perspectivas pré-estabelecidas que vão sendo desmontadas. Os assuntos passam pelo ideário feminista, pela política parlamentar, as passeatas da juventude e as ideias que alimentam a ideologia da esquerda. Há críticas à medicina ocidental e ao papel de profeta do médico. Levanta-se a possibilidade de as crenças e da fé curarem o corpo. Nada mal para um grupo assumidamente intelectual.
Até que April confessa a seu marido que formam o casal mais saudável da reunião. O cinismo que a acompanhava deu lugar a um olhar mais ameno ao marido.
Também Bill começa a se questionar por ver acordado o desejo de viver. Não duvidamos de que no começo do filme ele estivesse paralisado perante a doença. Estaria agora ele ouvindo as sugestões de Gottfried? Os médicos então não são profetas? A cirurgia libera o carma e a fé promove a cura? Tais ideias cabem na mente de um materialista e cético convicto? Estaria a morte subvertendo sua maneira de pensar?
Nessa sequência de acontecimentos que nos deixam sem fôlego, passam quase despercebidas a visita de um cachorro (seria um lobo?) no terraço e a quebra do vidro na porta que assustou a todos logo no início do encontro. Pequenas situações que no esquema de uma diretora do porte de Sally Potter não será em vão.
Algo bem estranho está acontecendo. Ao bater em Bill, Janet se assusta: “Essa não sou eu! Eu acredito na verdade e na reconciliação”. De que verdade ela está falando? Ela não se reconhece na raiva.
São sinais desconfortáveis a rápida passagem de um animal (como assim?), ou o rompimento do vidro tão frágil de uma janela que faz sangrar o corpo. Emoções e caos. Sensação claustrofóbica e ironia. Um amargor elegante. Um contexto mundano tentando equilíbrio a duras penas.
Aos poucos, as personagens vão saindo da formalidade e dos critérios que organizam a convivência social. Perde-se a regulação dada pelas convenções sociais e todos vão se afundando no mundo de questões subjetivas e emocionais mais escondidas.
Desmontaram-se uma festa e muitas ilusões em relação aos relacionamentos e aos assuntos que podem ser importantes para a perspectiva de vida e das imagens que tais personagens têm de si mesmas.
Sem dúvida, o encontro festeja mais encerramentos e transformações do que nascimentos. E a diretora Sally Potter não dá solução final que alivie tais conflitos. Pelo contrário, ela ainda apresenta mais dados para nossa crescente perplexidade.
Na última cena, Janet com a arma na mão protesta com intensidade: “Você disse que me amava!” Quem diria?
Sob o som de um tango, essa última revelação de impacto dramático é um fechamento simplesmente magistral ao filme!