Nise, uma mulher à frente do seu tempo
por Pedro Ortiz
Por Pedro Ortiz e Titi Vidal
Ela autodenominou-se uma “psiquiatra rebelde”, percorreu com muita luta e determinação – não sem sobressaltos, oposições e sacrifícios pessoais – caminhos diferentes e desafiadores em sua trajetória pessoal e profissional. É considerada, com justiça histórica, uma das precursoras da humanização nas terapias com pacientes diagnosticados com distúrbios mentais e psicossociais, como a esquizofrenia. Foi uma mulher extremamente corajosa, desafiou seus colegas e o sistema estabelecido por não aceitar tratamentos violentos e desumanizantes que eram realizados nos hospitais psiquiátricos no Brasil. Criou o Museu de Imagens do Inconsciente, foi pioneira na arte-terapia e terapia assistida por animais no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro. Seu exemplo de vida, seu legado profissional e humano, a resistência pacífica mas não passiva, sua perseverança e generosidade são inspiração e aprendizado para todos nós, sobretudo em momentos tão difíceis e de futuro incerto que vivemos.
Uma psiquiatra rebelde
Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, 1944. Uma mulher de meia-idade, vestida sobriamente, caminha sozinha pela calçada em direção a um grande portão de ferro pesado e maciço, que parece ser a entrada de um presídio. Calmamente, com a mão fechada em punho, bate no portão algumas vezes. Sem resposta, bate novamente e insiste outra vez. Nada. Começa a bater sem parar, já não mais de forma delicada, agora forte, persistente e decidida. Finalmente alguém abre. A câmera a acompanha e vemos a entrada do então Centro Psiquiátrico Nacional, no bairro do Engenho de Dentro, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Ela se apresenta na recepção. É a dra. Nise da Silveira e está em seu primeiro dia de retorno ao trabalho como psiquiatra, após um longo período afastada do serviço público por perseguições de ordem política. Uma enfermeira a recebe e a conduz por corredores escuros, passando por alas femininas e masculinas onde os pacientes estão trancados atrás de pesadas grades. O ambiente lembra mesmo uma penitenciária, não um hospital. Ela chega a um auditório onde médicos, todos homens, estão reunidos em um seminário onde são apresentadas as novidades científicas para o tratamento psiquiátrico, como a lobotomia e a convulso-terapia, ou eletrochoque. Diante de uma demonstração prática da aplicação dos choques em um paciente até convulsioná-lo, ela questiona o colega sobre tal brutalidade. Assim começa o filme “Nise – o coração da loucura”, dirigido pelo cineasta Roberto Berliner, em 2015, com a atriz Glória Pires interpretando a protagonista.
Esta sequência inicial do filme, que mostra de forma quase documental a trajetória dessa mulher ímpar, que revolucionou a psiquiatria no Brasil ao propor e praticar uma abordagem terapêutica humanizada, radicalmente compreensiva, também nos revela um pouco do que seria esse percurso de vida e trabalho de Nise da Silveira. Ela teve que esmurrar muitas portas que estavam fechadas para os tratamentos humanizados, romper preconceitos dentro e fora do universo da medicina, combater o machismo, a arrogância – e ao mesmo tempo ignorância – de muitos profissionais da área e saltar obstáculos que sempre surgiram à sua frente, no caminho que ela e muitos dos seus discípulos, pacientes, simpatizantes, companheiros de trajetória e inspiradores trilharam.
Buscou o caminho oposto ao convencional ao propor um mergulho no inconsciente dos internos – que ela chamava respeitosa e carinhosamente de “clientes” e, de forma compreensiva ao observar o ser humano que aflorava por baixo de anos de embotamento e violências diversas, físicas, psíquicas e emocionais, propunha um exercício de liberdade para que a própria atividade criadora de cada um deles pudesse mobilizar vários aspectos da pisque. Para Nise, tanto as dissociações e desordens causadas pelos conflitos psicológicos como as forças ordenadoras auto-curativas são forças instintivas e movimentos que vêm do mesmo inconsciente. Foi pioneira e reuniu em seu trabalho no Centro Psiquiátrico Pedro II, assim rebatizado anos depois e hoje Instituto Municipal Nise da Silveira, no Rio de Janeiro, a visão, as pesquisas e contribuições de pensadores, pesquisadores e artistas como C.G.Jung, Antonin Artaud, Gaston Bachelard, Marie-Louise von Franz, Mario Pedrosa, entre outros, na busca da compreensão das experiências esquizofrênicas, do manuseio de diferentes materiais de trabalho e as reflexões sobre as vivências do espaço e do tempo.
E ao buscar inspiração em tantas obras, deixou sua marca e uma obra única e inovadora, complexa, compreensiva e transformadora. Nise da Silveira foi capaz de ir além e enxergar que as imagens internas são capazes de sobreviver mesmo quando a personalidade está desagregada, no caso de uma esquizofrenia. Criou ateliês de pintura e modelagem, o Museu de Imagens do Inconsciente, que possui um dos acervos mundialmente mais importantes na área. Iniciou no país a arte-terapia e a terapia assistida por animais e propiciou a expressão de muitos artistas-pacientes. Vários livros, filmes e documentários são dedicados à vida e obra de Nise da Silveira, como a trilogia “Imagens do Insconsciente” (1983-86), de Leon Hirszman, uma produção inovadora e corajosa, construída desde a ideia, passando pelo roteiro e pela sua realização a partir das conversas e da relação de amizade e confiança mútua que surgiu entre a dra. Nise e o cineasta. Também o longa-metragem “Nise – o coração da loucura”(2015), de Roberto Berliner, e o livro de Luiz Carlos Mello, “Nise da Silveira: caminhos de uma psiquiatra rebelde” (2015). Livro que começou pelas mãos da própria Nise, como uma espécie de autobiografia e que só pode ser concretizado após a sua morte, pelo empenho e dedicação de Mello, um de seus mais fiéis e constantes colaboradores, que contou com a participação afetiva de tantos outros amigos e amigas . A partir dessas obras, da produção da dra. Nise e de vários autores, é possível buscarmos uma reflexão compreensiva, exploratória e instigadora sobre essa grande brasileira do século XX.
Nas palavras de Marco Lucchesi, poeta, professor de literatura e grande amigo de Nise, ela “trazia dentro de si um sertão profundo, como o de Euclides, Rosa e o Mestre Graça, de quem foi amiga, inventando nomes de personagens, como Caralâmpia”. Este apelido atribuído a ela por Graciliano Ramos, durante a convivência que tiveram como presos políticos, depois foi usado pelo escritor para referir-se a ela em duas de suas obras, “Memórias do Cárcere” e “A terra dos meninos pelados”. (Ramos, 1954, p.28-29). Continuando com Lucchesi, Nise “trazia o ethos do sertão, o vigor e a nobreza das coisas que não se dobram, não se vendem. Donde sua cultura marcada por uma fortíssima instância moral, sua vontade inquebrantável, frente à intolerância e à injustiça” (Lucchesi, apud Mello, 2015, p.7). O texto da própria Nise, abaixo, demonstra esse caráter, sua ética humana e profissional.
“Durante esses anos todos que passei afastada, entrou em voga na psiquiatria uma série de tratamentos e medicamentos novos que antes não se usavam. Aquele miserável daquele português, Egas Muniz, que ganhou o Prêmio Nobel, tinha inventado a lobotomia. Outras novidades eram o eletrochoque, o choque de insulina e o de cardiazol. Fui trabalhar numa enfermaria com um médico inteligente, mas que estava adaptado àquelas inovações. Então me disse:
– A senhora vai aprender as novas técnicas de tratamento. Vamos começar pelo eletrochoque.
Paramos diante da cama de um doente que estava ali para tomar eletrochoque. O psiquiatra apertou o botão e o homem entrou em convulsão. Ele então mandou levar aquela paciente para a enfermaria e pediu que trouxessem outro. Quando o novo paciente ficou pronto para a aplicação do choque, o médico me disse:
– Aperte o botão.
E eu respondi:
– Não aperto.
Aí começou a rebelde”. (Mello, 2015, p.89)
Uma longa trajetória, numa vida marcada por grandes dificuldades e desafios superados foi moldando a força quase invencível de Nise da Silveira. Nascida em Maceió no ano de 1905, filha de Faustino, professor de matemática e jornalista, e de Maria Lídia, pianista, passou uma infância tranquila, tendo a casa frequentada por artistas e intelectuais. Muito cedo, aos 16 anos, foi aprovada e ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia, tendo sido a única mulher em uma turma de 157 homens. Formou-se em 1926, aos 21 anos de idade.
A morte de seu pai, no ano seguinte, lhe trouxe uma enorme tristeza, até porque Nise e o pai faziam aniversário no mesmo dia e ele veio a falecer cinco dias antes da data. Por todo o resto de sua vida, esse acontecimento foi traumático para ela, que tinha seu pai como seu grande amor. Com sua mãe, passaram muitas dificuldades. Nessa fase de sua vida, segundo ela mesma, suas mordomias acabaram. E como não conseguiu continuar em Maceió, tomou um navio e, em 1927, mudou-se para o Rio de Janeiro com seu marido Mário Magalhães, que também havia sido seu colega de faculdade.
O início da vida do jovem casal no Rio foi difícil. Inicialmente viveram em uma pensão em Copacabana e depois mudaram-se para Santa Teresa, em um quarto alugado numa casa de cômodos, em frente de onde vivia o poeta Manuel Bandeira, na Rua do Curvelo. Algum tempo depois, alugaram outro quarto em um belo casarão com vista para a baía da Guanabara. A vida era simples, sobreviviam à base de média com pão e manteiga na maioria dos dias, vez ou outra faziam uma extravagância e comiam um bife. Mário conseguiu um emprego, mas o salário era pouco. Fizeram amizades com pessoas interessantes e descobriram ali a felicidade da vida simples.
Tempos depois, Nise envolveu-se com os assuntos políticos. Chegou a frequentar reuniões do Partido Comunista Brasileiro, mas não por muito tempo porque “não era de sua índole ater-se a qualquer enquadramento ideológico”. Chegou a fazer parte da “ala médica reivindicadora” da União Feminina Brasileira, “que defendia os interesses de mulheres que viviam em condições precárias”. (Mello, 2015, p.67).
A mudança para o Rio de Janeiro havia sido motivada também por sua intenção em se tornar especialista em neurologia, tanto que chegou a estagiar na área, na clínica do dr. Antonio Austragésilo, da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil, atual UFRJ e colaborar com artigos médicos em jornais do Rio de Janeiro e de Alagoas.
Apesar de interessar-se pela política do país, tinha dificuldade em se acomodar nas organizações e acabou sendo expulsa do Partido Comunista, mesmo não sendo filiada ou militante regular. Os companheiros de partido não apoiavam seus estudos para o curso preparatório oficial de psiquiatria, para o concurso público como médica do Hospício Nacional de Alienados, na Praia Vermelha, onde Nise havia ido trabalhar como residente.
O concurso também chegou a despertar dúvidas nela, mas não exatamente por questões político-ideológicas. Ela não aceitava acriticamente o que estava em livros e era praticado pelo saber médico estabelecido. Era uma mulher que ouvia sua sensibilidade e usava sua independência com inteligência. Por exemplo, os livros diziam que os esquizofrênicos não possuíam afetividade, mas Nise desconfiava muito disso. Nessa época, por dificuldades financeiras, ficou morando em um quarto na Clínica Neuriátrica, onde era médica auxiliar, e por conviver com os doentes, não via neles o que lia nos livros. O pavilhão era ao lado do Hospital Pinel, e ela não gostava da palavra hospício, que não retratava o que via nos internos, de quem gostava muito e apreciava a convivência. Foi assim que decidiu fazer psiquiatria.
Nise da Silveira chegou a ser perseguida política e presa pela primeira vez, por apenas um dia, em fevereiro de 1936, por ter pertencido à União Feminina Brasileira. No mesmo ano, em março, foi presa de novo e levada ao DOPS e uma semana depois ao presídio da Rua Frei Caneca, onde ficou até junho de 1937. Havia sido denunciada por uma enfermeira do hospital que viu em sua mesa de trabalho, além dos livros de psiquiatria, outros de arte, alguns sobre marxismo e literatura. Com a prisão, Nise perdeu o emprego e foi afastada por oito anos do serviço público, cargo que havia sido conquistado por concurso, sob o argumento de que pertencia a um “círculo de ideias incompatíveis com a “democracia”.
Apesar de ter contato com o Partido Comunista, Nise não era uma militante política ativa. Em um primeiro momento, foi presa numa cela comum, mas enfrentou essa situação e pediu para ser transferida para onde estavam as outras mulheres, entre elas Olga Benário Prestes e Elisa Berger, presas políticas da ditadura Vargas.
O tempo passado na prisão, um ano e três meses, “foi uma experiência decisiva” para sua vida. “Foi uma vivência muito marcante. Eu fiquei com mania de liberdade”, disse em entrevista a Dulce Pandolfi. (Silveira, 1992, s/n). Enquanto esteve presa, teve um encontro importante com Graciliano Ramos, e essa relação seguiu-se mesmo após o tempo de prisão. Para Nise, essa amizade foi especial, dessas “raras amizades, nas quais as pessoas se comunicam de verdade, íntimo a íntimo” (Silveira, 1954, p.24-27). Em 21 de junho de 1937, foi posta em liberdade por não haver processo contra ela.
Depois desse período, ela viveu na clandestinidade, na Bahia e em outros estados do Norte e Nordeste e só no início dos anos 1940 ela e Mário casam-se em regime de comunhão de bens, porque assim estaria garantindo uma aposentadoria segura para sua esposa, caso viesse a falecer. Ele era delegado federal de saúde e na época da segunda guerra mundial chegou a viajar bastante para a base aérea norte-americana em Dacar.
Tanto enquanto esteve presa, como durante seu exílio no próprio país, Nise aproveitou para ler e estudar muito. Leu Freud, Proust, Spinoza e muitos outros autores que foram fundamentais em sua vida. Era simpatizante das ideias socialistas, apesar de haver se afastado do Partido Comunista e não ter se filiado a qualquer outro partido ou organização.
Imagens do inconsciente
Em 17 de abril de 1944, já no final do Estado Novo getulista, a dra. Nise da Silveira foi readmitida no serviço público e foi trabalhar no então Centro Psiquiátrico Nacional, em Engenho de Dentro (que depois chamou-se Centro Psiquiátrico Pedro II e hoje em dia chama-se Instituto Municipal Nise da Silveira). Aquelas cenas iniciais do filme dirigido por Roberto Berliner mostram Gloria Pires interpretando a dra. Nise nesse retorno ao trabalho como médica psiquiátrica.
Enquanto esteve afastada, algumas técnicas e práticas psiquiátricas surgiram e foram consolidadas e Egas Miuniz, que ganhou um prêmio Nobel, inventou a lobotomia. Havia também o eletrochoque, o choque de insulina e o de cardiazol. Na sua volta à ativa, foi trabalhar com um médico que praticava tudo isso e queria ensiná-la. Foi quando, negando-se a utilizar esses métodos desumanizantes, iniciou sua trajetória de psiquiatra rebelde e inovadora.
Como não aceitava os métodos violentos de “tratamento”, o diretor do hospital confiou-lhe uma área menosprezada. Nise assumiu o novo desafio e em 1946 fundou a Seção de Terapêutica Ocupacional, uma inovação para a época dentro de um hospital psiquiátrico. Aos poucos, transformou o local em um atelier de pintura, modelagem, escultura. No trabalho dos pacientes-clientes, “desenho e pintura espontâneos revelaram-se de tão grande interesse cientifico e artístico que esse atelier cedo adquiriu posição especial” (Silveira, 1981, p. 15).
Apesar da personalidade dos internos totalmente desagregada, as imagens sobreviviam e mesmo sem nunca haverem pintado antes da esquizofrenia, conseguiam manifestar uma intensa criatividade imaginária. Um de seus pacientes, Fernando Diniz, disse que mudou “para o mundo das imagens. Mudou a alma para outra coisa. As imagens tomam a alma da pessoa”. (Silveira, 1981, p. 15). E, de acordo com Nise, se as imagens tomam a alma da pessoa, “entende-se a necessidade de destacá-las tanto quanto possível do roldão invasor. Pintar seria agir. Seria um método de ação adequado para a defesa contra a inundação pelos conteúdos do inconsciente”. E assim, ela e seus assistentes passaram a incentivar a expressão das imagens do inconsciente através da arte.
Ao contrário do que outros psiquiatras diziam ao acreditar que a abstração nas imagens significava um embotamento afetivo, Nise da Silveira, que acompanhava todo processo de criação e convivia com os esquizofrênicos que, para ela, eram seres humanos como os outros, percebia que a abstração vinha da inquietação interior e que, assim, a “arte virá retirar as coisas desse redemoinho perturbador, virá esvaziá-lo de suas manifestações vitais sempre instáveis para submetê-las às leis permanentes que regem o mundo inorgânico”. Ou seja, “por meio de processos de abstração, o homem procura ‘um ponto de tranquilidade e um refúgio’”(Silveira, 1981, p.20).
De acordo com a dra. Nise, a experiência no aterlier de pintura do hospital psiquiátrico confirmou o recuo dos esquizofrênicos com relação à realidade externa, tão ameaçadora e, ao mesmo tempo, um medo da realidade interna, provavelmente mais ameaçadora ainda. Em outras palavras, ela também identificou a linguagem abstrata como uma maneira de dar forma a segredos pessoais, satisfazendo uma necessidade de expressão sem que os outros os devassassem por completo (Silveira, 1981, p.22). Em 1952, Nise e sua equipe criam o Museu de Imagens do Inconsciente, que reúne atualmente em seu acervo 360 mil obras de arte, sendo mais de 120 mil tombadas pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Anos antes, em 1947, uma primeira exposição reúne, fora do Hospital, obras pintadas pelos internos, na sede do Ministério da Educação no centro do Rio de Janeiro. Vários intelectuais, entre eles o renomado crítico de arte Mário Pedrosa, visitam a mostra e ficam impressionados pela qualidade artística dos trabalhos, que também despertam certa polêmica e visões conservadoras por outro lado. É famoso na época o embate entre Pedrosa e o crítico Quirino Campofiorito, que não reconhecia valor artístico nas pinturas dos esquizofrênicos.
“O artista não é aquele que sai diplomado da Escola Nacional de Belas Artes, do contrário não haveria artistas entre os povos primitivos, inclusive entre os nossos índios. Uma das funções mais poderosas da arte – descoberta da psicologia moderna – é a revelação do insconsciente, e este é tão misterioso no normal como no chamado anormal. As imagens do insconsciente são apenas uma linguagem simbólica que o psiquiatra tem por dever decifrar. Mas ninguém impede que essas imagens e sinais sejam, além do mais, harmoniosas, sedutoras, dramáticas, vivas ou belas, enfim, constituindo em si verdadeiras obras de arte”. (Pedrosa, 1947)
Sempre atenta às inovações nos estudos da psiquiatria e da mente humana, Nise da Silveira manteve uma profunda relação com C.G. Jung. Foi uma grande estudiosa e pioneira na divulgação da obra e das ideias dele no Brasil. Criou um grupo de estudos sobre Jung e chegou a se corresponder com ele por muito tempo, inclusive conheceram-se pessoalmente em 1957, em Zurique, na Suíça, quando ela viajou a convite dele para participar do II Congresso Internacional de Psiquiatria, com uma bolsa de estudos conquistada junto ao CNPq. Durante o congresso, Nise organizou em cinco salas a exposição A Esquizofrenia em Imagens, que Jung fez questão de inaugurar, com obras dos artistas do Museu de Imagens do Insconsciente.
A partir dessa estadia na Suíça e no Instituto C.G. Jung, ela também manteve uma longa relação com Marie Louse Von-Franz, uma das principais assistentes e discípulas de Jung. Nise traduziu a obra de Jung aplicada ao que via na arte dos esquizofrênicos de quem cuidou, observando as imagens circulares que provam que as forças inconscientes mantém-se vivas na esquizofrenia, e que de alguma forma existe uma compensação à dissociação do consciente. Por ter estudado profundamente Jung, também pôde observar a forte presença de elementos do inconsciente coletivo na arte dos esquizofrênicos. Os arquétipos e o que Jung percebeu como sendo a estrutura psíquica básica comum a todos os seres humanos estão presentes também no inconsciente dos esquizofrênicos, que podem manifestar tais elementos através da arte.
Os animais, especialmente os gatos, também fizeram parte da vida e do trabalho de Nise da Silveira. Foi por conta de um gato que ela transformou o velho conceito de Terapia Ocupacional em Emoção de Lidar. A presença dos gatos na vida de Nise e de seus pacientes, como sua presença na arte, inspirou sua obra e sua visão de mundo. Por exemplo, a pintura de uma gata feita por Victor Brauner oferece, nas palavras da psiquiatra, o mais exato conceito de esquizofrenia (Silveira, 1998, p.29). Em seu trabalho cotidiano no hospital, também pôde observar a relação entre os esquizofrênicos e os cães e gatos e percebeu o afloramento da afetividade deles, presente ao lidar com os animais. Eles, os cachorros e os gatos, foram seus co-terapeutas por décadas e fundamentais no exercício de seu trabalho como psiquiatra.
Ela dirigiu a Seção de Terapia Ocupacional no Centro Psiquiátrico Pedro II entre os anos de 1946 e 1974, e nesse trabalho incansável, de décadas, descobriu as incontáveis riquezas preservadas no inconsciente de seus pacientes-clientes. Para ela, sabedoria e loucura são originadas na mesma fonte e, justamente quando uma pessoa considerada ajuizadíssima comete um ato de loucura, ela descobre muito sobre sua forma de viver.
Preocupada com a assistência terapêutica aos pacientes que viviam uma espécie de ciclo vicioso de reinternações, Nise e amigas médicas decidem investir na criação de um espaço para atendimento humanizado a essas pessoas. “O espantoso número de reinternações, 70%, dava testemunho de que algo estava errado no conjunto do tratamento psiquiátrico. Daí nasceu a ideia de criar um setor do hospital que funcionasse como uma espécie de ponte entre o hospital, a família e o meio social”. Mas, infelizmente, “essa proposta não teve nenhuma repercussão” (Silveira, 197_). Então, decidem buscar uma saída fora do hospital e conseguem a cessão do segundo andar de um casarão antigo no bairro da Tijuca, que havia sido cedido em parte pela proprietária para um colégio da APAE. Batizado como Casa das Palmeiras, o espaço vai ser durante muitos anos uma experiência inovadora e precursora da luta antimanicomial. “A Casa das Palmeiras foi criada em 1956, com as portas e janelas abertas para os loucos. E me diziam: você é louca, vai acontecer um desastre. Desastres acontecem, o que se vai fazer? Mas a Casa está aberta, liberdade não faz mal a ninguém”. (Silveira, 1987).
Em busca do espaço cotidiano
“Há muito tempo estou tentando fazer esse filme”. Em 1968, o cineasta Leon Hirszman assiste no Hospital Pedro II a uma leitura da peça “As bacantes”, de Eurípedes, onde o ator Rubens Corrêa, a convite de Nise da Silveira, lê o papel de Dioniso. “Um dos internos, Fernando Diniz, tocava pandeiro, fazia o ritmo. Eu fiquei tomado. Era um seminário sobre o mito de Dioniso, num clima de leituras de Reich, de uma literatura pós-freudiana, uma grande efervescência cultural”, lembraria o cineasta sobre aquela primeira experiência de contato com Nise e seu trabalho. (Hirszman, 1995, p.66). “Seis anos depois estávamos os dois, Nise e eu, apaixonados pela ideia de fazer um filme”. (Hirszman, 2015, p.6). O projeto acalentado por ambos, que já eram amigos nessa época, começa a ganhar a forma de um roteiro cinematográfico a partir de 1974. Ela escreve inicialmente a história de Fernando Diniz, que vai resultar no primeiro documentário da trilogia, Imagens do Inconsciente, filmada por Leon entre os anos de 1983 e 1986.
“Começamos a trabalhar assim que a dra. Nise conseguiu unificar numa narrativa a dolorosa experiência afetiva de Fernando, dilacerado pela brutalidade cotidiana. Negro, filho de uma empregada doméstica baiana, busca recuperar o espaço cotidiano pintando um quadro – a pintura em luta constante contra o caos, um caos vivenciado como uma paixão, um amor impossível por uma moça de outra classe social. O sofrimento causado pela rejeição forçou sua identificação e submissão à mãe, por quem tinha grande respeito. Fernando submerge como uma autodefesa, para viver no inconsciente”. (Hirszman, 2015, p.8-9).
Além do primeiro filme centrado na história de Fernando Diniz e sua trajetória como artista, o segundo episódio, No reino das mães, vai mostrar o percurso de Adelina Gomes e sua transformação a partir da arte. “Através da pintura, conseguiu expulsar os fantasmas da mãe castradora, recuperando a sua condição feminina”, destaca o diretor, lembrando que tiveram acesso “a um tesouro que a dra. Nise nos propiciou por uma questão de confiança”. (Hirszman, 2015, p. 10-11). Já no terceiro filme, A barca do sol, o personagem é Carlos Pertuis. “Creio eu, foi o maior desafio que Leon encontrou. E também o trabalho que mais fascínio teve sobre ele”, recorda Nise ao homenagear o amigo cineasta que morreu precocemente, em 1987. (Silveira, 1987). Logo após a conclusão dos documentários, Leon e equipe filmaram uma longa entrevista com Nise, mas ele não teve tempo para editar o material. Eduardo Escorel, amigo e colaborador, vai realizar essa montagem em 2014, como um Posfácio da belíssima obra conjunta de Leon e Nise.
Em 30 de outubro de 1999, Nise da Silveira falece no Rio de Janeiro, depois de quarenta dias internada no Hospital da Lagoa. Sua vida e seu trabalho foram extremamente compreensivos, ao olharem para o ser humano inteiro, incluindo sua estrutura básica da psique e o inconsciente preservados. Foi capaz de enfrentar médicos e tantas críticas que sofreu em vida para praticar aquilo que acreditava e desenvolver uma trajetória pioneira e inovadora, que revolucionou a forma de lidar com a esquizofrenia no Brasil e no mundo.
“O poeta do espaço
É um andarilho errante
Ele salta de um planeta a outro
De uma estrela a outra
em grandes passadas
ele não carrega nem cajado nem sacola
ele é livre” (Nise da Silveira)
Referências
BERLINER, Roberto. Nise – o coração da loucura. DVD, Imagem Filmes, 2015.
HIRSZMAN, Leon. Imagens do inconsciente (1983-1985). DVD e Livreto. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2015.
HIRSZMAN, Leon. É bom falar. Catálogo do Centro Cultural Banco do Brasil. Rio de Janeiro, 1995, p. 66.
MELLO, Luiz Carlos. Nise da Silveira – caminhos de uma psiquiatra rebelde. Rio de Janeiro: Automática Edições, 2015.
PEDROSA, Mário. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 7 fev. 1947.
RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954. v.2, p. 28-29.
SILVEIRA, Nise da. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981.
SILVEIRA, Nise. O mundo das imagens. São Paulo: Ática, 1992.
SILVEIRA, Nise da. Gatos – A Emoção de Lidar. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial, 1998.
SILVEIRA, Nise. Jung: vida e obra. Rio de Janeiro, José Álvaro Ed.,1968.
SILVEIRA, Nise. Entrevista concedida a Dulce Pandolfi. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 26 set. 1992.
SILVEIRA, Nise. Doze personagens falam de um autor. Revista Manchete, Rio de Janeiro: Bloch Editores, n.90, p.24-27, 9 jan.1954. Entrevista concedida a Darwin Brandão.
SILVEIRA, Nise. Manuscrito (197_). Arquivo Nise da Silveira – SAMII (Sociedade de Amigos do Museu de Imagens do Insconsciente).
SILVEIRA, Nise. Depoimento feito após a morte de Leon. Manuscrito. Rio de Janeiro, 22 de outubro de 1987. Arquivo Nise da Silveira – SAMII (Sociedade de Amigos do Museu de Imagens do Insconsciente).
SILVEIRA, Nise. Entrevista concedida a Luiz Carlos Lisboa. O Estado de São Paulo, São Paulo, ano 7, n. 345, 24 jan. 1987. Caderno de Cultura.
VON FRANZ, Marie Louise. The cat: a tale for feminine redemption. Canadá: Inner City Books, 1999.
Ocupação Nise da Silveira, Itaú Cultural. São Paulo, de 25/11/2017 a 28/01/2018. http://www.itaucultural.org.br/ocupacao/nise-da-silveira/
Foto: Centro Cultural da Saúde – Ministério da Saúde