Não basta ser capitalismo consciente; a prática precisa ser consistente
por Michelle Prazeres
Esta semana, um amigo querido me contou que estava fazendo três reuniões simultâneas; e que fica ouvindo todas e quando é “convocado”, interage com os participantes de cada uma.
A produtividade e o produtivismo estão nos deixando doentes de humanidade. O trabalho não pode ser essa máquina de moer gente. Nas palavras do filósofo coreano Byung-Chul Han, a “absolutização do trabalho é uma das grandes engrenagens da sociedade do cansaço”.
O mais impressionante é que este amigo trabalha em uma empresa que possui um reconhecido programa de responsabilidade social.
A pergunta que ficou pulsando em mim foi: qual é o sentido de ter um programa voltado para isso, investir recursos (humanos, financeiros, tecnológicos e estruturais) em ações de cunho social e ambiental, quando a empresa não cuida dos próprios funcionários?
Eu – nesta mesma semana, por coincidência – tomei contato com uma linda pesquisa de uma aluna sobre o assunto e descobri que isso tem um nome: chama-se causewashing.
É legítimo que empresas invistam em causas para fazer o que chamam de “branding” (construção da marca) ou “marketing social” (divulgação da marca conectada a valores considerados positivos pelas pessoas), mas é um problema quando isso é tudo um belo discurso, sem conexão alguma com a prática. Ou seja: sem nenhuma consistência.
Não acho exatamente um problema o fato de as empresas estarem cada vez mais conectadas com as causas sociais. Pelo contrário. Sou uma entusiasta das grandes agendas de coletivos e movimentos entrarem nas corporações e sensibilizarem lideranças e funcionários, para que possamos ser cada vez mais humanos também nas relações de trabalho.
Existência que comunica
O problema é quando esta “comunicação” de causa não está atrelada a uma prática interna coerente com os valores comunicados para o mundo. Inclusive, isso representa uma “falha” na concepção de comunicação: porque comunicação não é apenas o momento “técnico” em que a empresa “divulga” uma ideia ou ação; a comunicação é também a mensagem mais ampla que aquela marca ou empresa transmitem ao mundo com a sua existência.
Ou seja: com esta concepção de “falar sobre as causas, mas não fazer nada a respeito”, fica bem evidente que a intenção do investimento social é de promoção e não está necessariamente (ou genuinamente) se buscando uma transformação da realidade.
Ingenuidade minha?
Não sei. Acredito que as corporações são estruturas fundamentais na transformação da realidade. Afinal de contas, são sujeitos centrais da vida contemporânea, onde o trabalho, como nos lembra Han, é uma instância de gerenciamento total da nossa vida.
Justamente por isso, acredito que algum movimento deve vir de dentro deste campo, como vem acontecendo, por exemplo, com as empresas do chamado “capitalismo consciente” (se quiser saber mais, recomendo pesquisar sobre o “Sistema B”).
Acontece que não basta ser consciente.
É preciso que o discurso seja consistente, que encontre reverberação prática internamente.
Traduzindo em bom português: não adianta falar sobre burnout com os “colaboradores”, fazer oficinas de mindfulness, ter um programa de “saúde do trabalhador” e fazer três reuniões simultâneas, programar jornadas extensivas de trabalho ou cobrar mais produtividade no meio de uma pandemia!
Culturas de cuidado
Por isso, é preciso mexer nas engrenagens não só das empresas, mas da cultura de velocidade contemporânea.
É preciso mexer na visão de produtividade.
Mexer nas jornadas de trabalho.
Mexer nas pausas.
Mexer, portanto, no bolso.
Na visão de “recursos” das empresas.
E, claro, mexer no lucro (ou nas formas pelas quais achamos que chega-se a ele).
É preciso mexer nas culturas organizacionais.
Na Escola do Tempo do Desacelera SP, trabalhamos com a ideia de cultura de cuidado. E estamos desenhando indicadores para reconhecer “empresas que cuidam”.
Empresas cuidadoras seriam aquelas que olham para as jornadas, pensam nas condições de trabalho e regimes de contratação (com benefícios, etc), pensam em ergonomia (também em condição de trabalho remoto), possuem programa de saúde do trabalhador, segurança do trabalho e prevenção a acidentes, possuem programas de bem estar (atividades físicas, descanso, serviços), se preocupam com as pausas (incluindo tempos para alimentação e descanso em turnos de trabalho), dispõem de departamento médico ou apoio á saúde, investem na formação continuada de seus funcionários, em espaços adequados de trabalho (arquitetura verde), possuem planos de carreira e políticas transparentes de gestão de carreira (inclusive política para demissões, rescisões e suspensões), possuem planos de licença parentalidade e política voltada para famílias com bebês e crianças, oferecem participação nos resultados, possuem instâncias de participação em processos de tomada de decisão (baseadas em diálogo), preocupam-se com o senso de coletividade e colaboração das equipes e fomentam práticas de comunicação não violenta nos processos internos… e poderíamos listar uma infinidade de indicadores para compor este índice.
A pandemia jogou fermento nesta discussão. O slow foi considerado um dos aprendizados deste período por uma edição especial da Revista HSM Management (https://www.desacelerasp.com.br/2020/08/13/slow-um-dos-100-aprendizados-da-pandemia-segundo-a-hsm-management/).
Ao mesmo tempo, neste último ano de intensificação e agravamento dos efeitos da pandemia no Brasil, muitas empresas descuidaram dos seus funcionários (e vale registrar que não estamos tratando dos abusos que marcam as relações de trabalho informais ou não formais em um país tão desigual como o nosso!).
O ponto aqui é: comunicação de causa não pode ser um conteúdo a ser usado como um discurso de fortalecimento de marca. Deve ser uma atitude ancorada na prática e na cultura da organização.
Não basta ser capitalismo consciente. A prática precisa ser consistente.
É preciso ter raiz para frutificar.