(In)sustentável
por Pedro Ortiz
Há um claro sentimento em um número crescente de pessoas
de que chegou a hora de nós todos tentarmos mudar nosso modo de vida,
nos esforçarmos para viver uma vida mais cuidadosa.
Jeremy Irons – Trashed (2012)
As cenas iniciais são impressionantes e estarrecedoras.
O ator britânico Jeremy Irons caminha por uma praia – ou o que restou dela – na periferia da cidade libanesa de Sidon, em meio a montanhas de lixo de todos os tipos. O que outrora era um refúgio em frente ao Mediterrâneo se converteu em pouco mais de trinta anos em um lixão de grandes proporções. O desastre parece ser irreversível. Caminhões não param de despejar diariamente toneladas de dejetos à beira-mar, e a paisagem de terra arrasada lembra muitas cidades do Líbano destruídas, há décadas, pelos sucessivos conflitos armados que cindiram o país e marcaram profundamente o seu povo. Visivelmente abalado, Irons murmura: “Isso é espantoso”.
O documentário Trashed: para onde vai o nosso lixo? (2012), da diretora inglesa Candida Brady, tem Jeremy Irons como produtor-executivo e principal narrador, em uma viagem documental e jornalística ao redor do planeta, mostrando os graves impactos da poluição causada pelo descontrole da superprodução, a exploração desenfreada dos recursos naturais, o desperdício e descuido com os seres humanos, animais e demais formas de vida.
A trilha sonora do premiado compositor Vangelis acompanha Irons, diretora e equipe de filmagem por paisagens desoladoras da China, rios cheios de detritos na Indonésia e, mais impressionante, gigantes correntes marítimas e depósitos (“ilhas”) formados por fragmentos de plástico no norte do Oceano Pacífico, com seus efeitos devastadores na vida marinha. A cada ano, usamos e jogamos fora 58 bilhões de copos descartáveis, 200 bilhões de garrafas “pet” e mais outros bilhões de sacos plásticos, alerta o documentário. É um soco no estômago e um convite urgente à reflexão.
No geral, consumimos mais do que precisamos, produzimos lixo em grande escala, descartamos, reciclamos uma parcela ainda pequena, enterramos, incineramos e, com poucas exceções, não nos preocupamos para onde vão todos esses detritos e no que eles se transformam, qual o impacto nas nossas vidas, na dos animais e plantas, rios e oceanos, lençóis freáticos, no solo, na atmosfera, enfim, no planeta que habitamos: no ar que respiramos, na água que bebemos, nos alimentos que comemos.
Do global para o local
A cidade californiana de San Francisco (EUA) consegue reciclar atualmente mais de 77% de todo o lixo produzido por seus habitantes, comércios e indústrias, com um forte e constante trabalho de conscientização e uma lei municipal específica. Na Holanda, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente e a agência ambiental dos países baixos (NL Agency), 80% do lixo produzido é reciclado, 16% são incinerados e somente 4% vão para aterros sanitários. Há mais de quatro décadas, governo, empresas e cidadãos holandeses investem para que sua política nacional de reciclagem e destinação de resíduos se mantenha e seja constantemente aperfeiçoada.
Mas não existe “almoço grátis”, diz o ditado popular: a sociedade holandesa paga algo em torno de 250 euros por ano, por residência, para que se mantenha esse sistema adequado e eficaz de coleta e destinação do lixo. Em vários outros países, cidadãos individualmente, pequenos comércios, empresas, ONGs, governos também investem na mudança de hábitos, criando alternativas de consumo consciente, redução da produção de lixo e ampliação dos sistemas de reciclagem.
No Brasil, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída pela lei federal 12.305/2010 e alcançada após muitos anos de discussões e debates dentro e fora do Parlamento, mobilizando diversos atores sociais, se baseia no princípio da responsabilidade compartilhada entre as três esferas de governo, cidadãos e empresas. Uma das metas principais estabelecidas é a de que todos os municípios do país eliminassem até agosto de 2014 os seus lixões, substituindo-os por aterros sanitários e implantando a coleta seletiva. Infelizmente, ainda há cerca de 2 mil lixões funcionando nas cidades brasileiras e três capitais, Brasília, Belém e Porto Velho, não conseguiram cumprir a meta da PNRS, de extingui-los. O caso mais emblemático e grave é o da capital federal, onde o chamado Lixão da Estrutural continua ativo, em uma área equivalente a 170 campos de futebol e montanhas de lixo que chegam a 50 metros de altura, onde catadores trabalham dia e noite.
A diferença básica entre um lixão e um aterro sanitário é que a primeira modalidade apenas recebe os dejetos, empilhando-os em montanhas de detritos a céu aberto e enterrando-os em parte, sem nenhum tratamento ambiental, o que gera contaminação das águas subterrâneas e da superfície ao redor pelo chorume, líquido tóxico resultante da decomposição do lixo orgânico. Além da proliferação de insetos transmissores de doenças, gases poluentes como o metano e condições sub-humanas para as famílias de catadores, que sobrevivem dos dejetos. Um estudo da Associação Brasileira de Limpeza Pública e Resíduos Especiais aponta que mais de 40% de todo o lixo produzido no Brasil ainda tem destinação inadequada pelos padrões ambientais internacionais e metade dos municípios ainda não se adequou à legislação específica. Temos, portanto, um longo caminho pela frente, um desafio e tanto.
Lixo extraordinário
Dados compilados pelas Nações Unidas e pelo Banco Mundial são reveladores das dimensões da chamada “civilização do lixo” nesta virada de século e de milênio: nas últimas três décadas a produção de resíduos sólidos urbanos cresceu três vezes mais rápido que a população do planeta, chegando a 2,01 bilhão de toneladas de lixo em 2016. No final de setembro, o Banco Mundial publicou um relatório que traz um alerta: se não forem tomadas medidas urgentes para redução da produção de resíduos o volume aumentará 70% até 2050, quando se estima que atingirá o impressionante número de 3,4 bilhões de toneladas no mundo.
Mais de 80% desses resíduos são produzidos por 20% da população mundial. Embora os países mais ricos representem 16% da população no planeta, produzem mais de um terço do lixo total. O Brasil já figura na quinta colocação entre os maiores produtores de lixo, com 78 milhões de toneladas em 2014. Diariamente, a cidade de São Paulo gera 18 mil toneladas de resíduos, um volume que encheria um estádio de futebol do porte do Pacaembu. Comparativamente, Nova Iorque produz quase 25 mil toneladas. No total dos países, os Estados Unidos produzem mais de 600 mil toneladas diárias de lixo, e o Brasil gera uma cifra de mais de 180 mil toneladas diárias. Ou, futebolisticamente falando, o equivalente a dez estádios abarrotados de lixo. Todos os dias.
Ainda segundo o Banco Mundial, se os quase 42% de lixo descartado no Brasil de forma inadequada fosse para aterros sanitários, onde o chorume e o metano pudessem ser aproveitados na produção de compostagem (adubo) e biogás, para geração térmica de energia elétrica, em menos de duas décadas poderiam ser criados 110 mil novos empregos só com a gestão ambiental desses resíduos, com acréscimo de US$ 35 bilhões na economia e suprimento de 1% da demanda nacional de eletricidade. A simples queima do gás metano (CH4) produzido nos aterros, mesmo que não gerando energia, já prestaria um serviço ambiental relevante, pois o subproduto dessa queima, o dióxido de carbono (CO2), é vinte vezes menos prejudicial à atmosfera, ainda que também poluente.
À margem da rodovia de mesmo nome, em uma das saídas da capital paulista no bairro paulistano de Perus, o aterro sanitário Bandeirantes gera desde 2004 energia elétrica com a queima do metano produzido no local, hoje já desativado como destino de resíduos. É a primeira usina de biogás do país. Junto com a segunda, no aterro São João, na Zona Sul da cidade e também já desativado, produzem 2% da energia elétrica consumida em São Paulo. Ainda é pouco? Talvez, mas é um começo, ambientalmente mais razoável e economicamente rentável. Leilões realizados para venda de créditos de carbono da queima do metano e geração de energia já renderam mais de R$ 70 milhões, divididos entre a empresa geradora e a Prefeitura de São Paulo, segundo o jornalista André Trigueiro, especialista em questões ambientais. “Na lógica do empreendedor, o retorno do capital investido se dá por duas vias: a emissão de créditos de carbono (quando uma certificadora da ONU mede a quantidade de metano queimado e converte esse número em papel com valor de mercado para os países ricos signatários do Protocolo de Kyoto que assumiram o compromisso de reduzirem suas emissões) e a venda de energia elétrica” (Trigueiro, 2013, p. 2).
Aqui também, a exemplo de documentários impactantes, como Trashed, realizadores brasileiros têm produzido filmes que trazem à tona essa realidade ainda pouco conhecida por parcela significativa da população, mostrando aspectos humanos, econômicos e sociais da cadeia de produção e descarte dos resíduos urbanos nas grandes metrópoles, seus impasses e possíveis soluções, em busca da sustentabilidade no processo. Eduardo Coutinho realizou em 1992 Boca de Lixo e Marcos Prado dirigiu Estamira (2004). Em 2009, o fotógrafo e artista plástico brasileiro Vik Muniz, internacionalmente reconhecido e premiado por seu trabalho sempre original e provocativo, produziu, com a colaboração de Fabio Ghivelder, direção da cineasta britânica Lucy Walker e codireção dos documentaristas brasileiros João Jardim e Karen Harley, Lixo Extraordinário. O documentário mostra o dia a dia dos moradores do Jardim Gramacho, suas agruras cotidianas e seus sonhos, em paralelo com a dinâmica e funcionamento do então maior aterro sanitário da América Latina, fechado em 2012.
Arte e lixo. Lixo que vira arte. Pessoas e suas histórias de vida, sonhos, desejos. Sensibilidade do artista e dos seus personagens, em um diálogo profundo e humano, digno. Lixo também pode ser arte, pessoas comuns também podem ser artistas, protagonistas da sua história. Além de exibido em circuito nacional, Lixo Extraordinário girou também o mundo e foi premiado em diversos festivais internacionais. As fotografias de Vik Muniz produzidas com os moradores foram leiloadas e parte do dinheiro arrecadado foi doada à associação de catadores do Jardim Gramacho.
Incertezas e tentativas de compreensão
Em 1992, tive o privilégio pessoal e profissional de participar da cobertura jornalística da ECO 92, ou Rio 92, a primeira de uma sequência de grandes conferências mundiais da ONU sobre meio ambiente, realizada com a presença de mais de 180 chefes de Estado e de governo no Riocentro, em Jacarepaguá (RJ), em paralelo ao Fórum Global, que reuniu ONGs ambientalistas, movimentos sociais e milhares de pessoas do mundo todo, de várias nacionalidades, etnias e culturas, no Aterro do Flamengo. Em duas semanas de trabalho intenso entre os dois fóruns, comecei a ter contato mais aprofundado com as principais questões socioambientais, em debates e discussões reunindo governantes, diplomatas, cientistas, empresários, ambientalistas, pesquisadores, os mais diversos segmentos da sociedade planetária, repercutidas pela mídia e que resultaram em muitos textos, compilados na Agenda 21, um compromisso mundial das nações para um futuro sustentável do planeta e dos seus habitantes, e no documento final O futuro que queremos.
Em uma daquelas tardes de intenso trabalho no Riocentro pude assistir a uma conferência e participar em seguida de uma entrevista coletiva com o oceanógrafo e documentarista francês Jacques Cousteau, que pediu aos representantes dos países presentes à Rio 92 que redigissem declarações originais, que não ficassem apenas no papel. Essa frase foi lembrada duas décadas depois por seu neto Phillipe, mediador da sessão de encerramento dos Diálogos para o Desenvolvimento Sustentável, na Rio+20, onde também estive presente como jornalista.
Já são mais de 20 anos entre as duas conferências, com a Rio+10 que também cobri em Johannesburgo, mais o Protocolo de Kyoto, as dezenas de conferências das partes do Clima (COPs), conferências sobre a água, créditos de carbono, desmatamento, as várias rodadas do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) e seus relatórios de centenas de cientistas sobre os cenários dessas mudanças, as edições do Fórum Social, enfim, numerosas iniciativas da sociedade, da comunidade científica e dos governos para tentar compreender as causas e consequências das mudanças que a Terra vive, em boa parte relacionadas à aceleração da exploração dos recursos naturais pós-Revolução Industrial, aumento da poluição e degradação ambiental de proporções nunca vividas pela civilização humana, como secas devastadoras e as recentes crises hídricas.
Uma luta incansável por soluções socioambientais minimamente sustentáveis, desde o conceito de Desenvolvimento Sustentável, “oficializado” como senso comum na Eco 92. “Entre a Eco 92 e a Rio+20, em apenas duas décadas, acrescentamos mais 1,6 bilhão de novos habitantes/consumidores e mais US$ 50 trilhões em PIB, ao planeta. Como civilização, continuamos a crescer a um ritmo acelerado de 80 milhões de novos habitantes por ano, pressionando os sistemas naturais que sustentam a ‘eco-nomia’. A cada dia, 219 mil novos habitantes sentam-se à mesa do almoço global, e um terço desses seres humanos não terá o que comer” (Assadourian e Prugh, 2013, p. 8).
Um dos conceitos fundamentais na busca pela sustentabilidade, transformado em slogan, envolve a ideia de redução do consumo, menor produção de lixo e reaproveitamento máximo dos detritos, seja na geração de renda para as cooperativas de catadores e de reciclagem, seja na transformação industrial do lixo em outros produtos, ou na geração de energia. Aos 3 Rs de Reduzir, Reutilizar e Reciclar, presentes inclusive na PNRS, o sociólogo e autor do livro Lixo: cenários e desafios (2011), Mauricio Waldman, sugere “agregar outro ‘R’ ainda mais essencial: o de Repensar as modalidades de produzir, consumir e descartar. Por definição, lixo não se resume ao saquinho que colocamos na calçada. Sua gênese encontra primeiramente abrigo em noções culturalmente aceitas de status e de consumo, acepções que solicitam revisão urgente” (Waldman, 2011, p. 10).
Ainda que algumas ideias possam parecer utópicas, a compreensão de que outro modo de vida é possível, com menos exploração das pessoas e do planeta, consumo reduzido e mais consciente, visão crítica e propositiva, participação cidadã, solidariedade, iniciativas colaborativas e sustentáveis conquistam adeptos em várias partes do mundo. Em 1990, por exemplo, a ONG canadense Adbusters Media Foundation lançou a proposta do Dia Internacional do Não- Consumo / Buy Nothing Day, o 24 de novembro, data próxima ao Dia de Ação de Graças celebrado nos Estados Unidos e Canadá, seguido pela sexta-feira das megaliquidações no comércio (Black Friday), hoje uma tendência até no Brasil.
“Pare de comprar, comece a viver!”, é um dos slogans dos anticonsumistas, que a cada ano se manifestam em diversos países, de acordo com o historiador brasileiro Nicolau Sevcenko, em seu livro A corrida para o século XXI: no loop da montanha russa (Sevcenko, 2001, p. 48-49). Entre tantos desafios, nos colocamos diante da necessidade de uma profunda mudança de mentalidade, de atitude, com visões de mundo mais inclusivas, tolerantes, abertas ao novo e ao desconhecido, com menos verdades e mais incertezas. Uma visão complexa, menos cientificista ou dogmática, não determinista ou simplificadora, que busque na dialogia entre os vários saberes, científicos e não científicos, uma relação menos hierárquica e mais democrática entre ciência, conhecimento, poder e sociedade, como há décadas preconiza Edgar Morin, ao propor as noções e os caminhos possíveis para uma epistemologia da complexidade, uma ciência com consciência, um caos organizador (Morin, 2010, p. 9-10).
Nesse momento em que afloram novos paradigmas, em que a consciência planetária se transforma e novas relações vão sendo tecidas no interior das sociedades, essa mudança de mentalidade também é cultural, política, econômica e social e envolve esforços em vários segmentos, dos governos, das empresas, do terceiro setor e dos cidadãos, individualmente ou em iniciativas coletivas. Não precisamos mais pensar em “dominar” a natureza e continuar no velho paradigma da exploração dos recursos naturais até a sua exaustão, mas mudar de atitude e contribuir, cada um a partir do seu local de atuação, para a efetiva sustentabilidade do planeta e de todos os seus habitantes, de todas as espécies.
OBS: Texto (com atualizações) originalmente publicado no livro:
Comunicação, diálogo e compreensão
(Org.) Dimas A. Künsch, Guilherme Azevedo, Pedro
Debs Brito, Viviane Regina Mansi. São Paulo: Plêiade,
- 309 p. ISBN: 978-85-7651-259-2 (pp. 287-297)
Referências
Trashed – para onde vai nosso lixo? Candida Brady (diretora), Jeremy Irons (produtor-executivo). Blenheim Films, Grã-Bretanha, 2012. https://vimeo.com/140888282
Lixo Extraordinário. Vik Muniz, Lucy Walker, João Jardim, Karen Harley. Brasil/Reino Unido, 2011. https://www.youtube.com/watch?v=61eudaWpWb8
ASSADOURIAN, Erik; PRUGH, Tom (Orgs.). Estado do Mundo
2013: a sustentabilidade ainda é possível? AKATU Consumo
Consciente, Universidade Livre da Mata Atlântica e The Worldwatch
Institute. Salvador: Uma Edições, 2013.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. 13ª edição. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2010.
SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da
montanha russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
TRIGUEIRO, André. Energia: a saudável opção do lixo. [online]. Disponível
em: <www.envolverde.com.br>. Acessado em 13 Nov. 2014.
WALDMAN, Maurício. Caminhos para deixar a Era do Lixo.
[online]. Disponível em: <http://outras-palavras.net>. Acessado
em 13 Nov. 2014.