É apenas futebol, mas nós gostamos
por Pedro Ortiz
“Ganamos, perdimos, igual nos divertimos”
(El fútbol a sol y sombra – Eduardo Galeano)
Minhas primeiras lembranças e memórias afetivas referentes ao universo futebolístico estão na infância, em tardes nos finais de semana acompanhando jogos do campeonato brasileiro pela TV, ou um programa dominical que mostrava as partidas mais importantes das copas do mundo. Lá aprendi história do futebol e vibrei com lances memoráveis dos mundiais de 58, 62, 66 e 70. Também nos campeonatos de futebol de botão que organizávamos nas férias com os amigos do quarteirão. Comprávamos em armarinhos os botões transparentes, de acetato e os decalques de escudos e números, pintávamos nas cores dos times e seleções, fazíamos os goleiros de caixas de fósforo com chumbo derretido dentro, as redes das traves com filó. Comecei no “ofício” como nove entre dez garotos, nas peladas disputadas sem muitas regras nas ruas e calçadas do bairro, entre transeuntes e carros, vez ou outra com a bola acertando em cheio alguma senhora que resolvia atravessar bem no meio da jogada decisiva ou quebrando a vidraça de algum vizinho, que era sempre o mais ranzinza, claro. Nós, do alto dos nossos 8 ou 9 anos éramos os reis da rua, os Pelés e Gérsons e Tostões e Rivellinos e Jairzinhos, contra os sempre temíveis alemães e italianos.
Também joguei muito futebol no time da escola, desde os 8 anos de idade, futebol de salão como se dizia nos idos dos anos 1970, treinávamos todas as semanas, a coisa era levada a sério, ganhamos e perdemos torneios que eram organizados pela secretaria municipal de esportes, jogos na quadra coberta do Pacaembu, que era um luxo, toda revestida de tacos de madeira, uma beleza, mas deslizava uma barbaridade. Ou na maior quadra da época, a do Ibirapuera. E em dezenas de outras quadras em colégios e clubes de todas as regiões da cidade. Depois passamos a jogar também futebol de campo, mas aí nosso time não era tão bom como o de salão e os campos eram sofríveis se comparados às quadras. Nada de grama, autênticos campos de várzea, areio?s ou terro?s. Quando chovia então, um lamaçal só. Uma vez cabeceei a bola de capotão encharcada, pesadíssima, que veio como um bólido do céu na cobrança do tiro de meta do goleiro adversário. Meu cérebro deu voltas dentro do crânio. Outra, na barreira com os colegas do time, para interceptar a cobrança de falta perigosa na entrada da área, a bola atingiu os países baixos e tive que sair de campo carregado, achei que nunca ia poder ter filhos na vida adulta, mas felizmente tenho três, lindos e saudáveis.
Meu pai, saudoso, também amava o futebol. Jogou uns anos no Paulista de Jundiaí, mas não como profissional. Um primo da minha mãe, já falecido, chegou a jogar como goleiro no time de veteranos do Palmeiras, como reserva do gigante Oberdan Catani, uma lenda da escola palestrina de formar grandes goleiros.
Sim, sou palmeirense desde criancinha. Uma grande parte da família paterna e materna também. Pai, mãe, irmão, sobrinho, tios e primos. Meu filho do meio, o Alê, também. As meninas não. Alice, a maior, adolescente, não liga pra futebol, está jogando vôlei e eu acho ótimo. E a caçula, a Luiza, filha da Titi e minha, era diplomática e tinha inventado um time fictício, pra não desagradar o pai alviverde nem a mãe alvinegra, mas recentemente está pendendo para o lado materno. Fazer o quê, ela ainda pode mudar de lado quando entender mais do futebol…ou não.
De mãos dadas com meu pai, às vezes num sábado ou domingo à tarde descíamos as ruas da Pompéia em direção ao belo estádio do Parque Antarctica, os jardins suspensos, a casa palmeirense, que deu lugar à grandiosa e moderna arena de hoje. Lá, víamos um jogo e depois, no final da partida, meu pai me levava até a cabine da Rádio Tupi, ele que havia trabalhado como radialista por alguns anos na emissora do Sumaré e tinha velhos amigos no jornalismo esportivo também, além de outras áreas. Eu, catatau tímido ao lado dele, observava como os locutores e comentaristas faziam as análises da peleja recém encerrada e, vez ou outra, recebiam na própria cabine algum craque para ser entrevistado no terceiro tempo. Tive o privilégio de ver, ao vivo e a cores, alguns dos meus ídolos da chamada “Segunda Academia” do Palmeiras, na década de 1970: Ademir da Guia, Leivinha, César “maluco”, Edu, Nei, Dudu, Luizão “Chevrolet” Pereira. Que maravilha. Tempos em que muitas famílias iam aos estádios, em que as rivalidades entre torcidas não eram tão violentas, os jogadores, mesmo os craques, não eram guiados em piloto quase automático pelo marketing e os patrocinadores, a corrupção não mandava e desmandava como hoje, embora já existisse, claro.
E a cada quatro anos, a Copa do Mundo enchia nossos olhos com seleções poderosas, craques de nomes impronunciáveis, disputas que eram quase batalhas de vida ou morte entre esquadrões de vários países, os mais tradicionais no esporte, as grandes escolas latino-americanas e europeias, mas também os “azarões”, as surpresas, revelações e “zebras”.
Daí vêm as imagens esmaecidas, ainda em preto e branco para nossos aparelhos de TV aqui, as vagas lembranças do dia 21 de junho de 1970, um domingo, no imponente e lotado Estádio Azteca da Cidade do México, com mais de 100 mil pessoas, onde o Brasil arrasou a Itália na final por 4 X 1, com golaços antológicos de Pelé, Gérson, Jairzinho e Carlos Alberto, o “capita”. Eu tinha 5 anos de idade. Depois da macarronada com frango do almoço de família, vimos aquela partidaça, com Pelé sendo carregado ao final, torcedores ensandecidos arrancando e levando peças do seu uniforme como recordação e o capitão erguendo a bela taça Jules Rimet, que com a conquista do tricampeonato, ficaria definitivamente no Brasil. Para ser roubada (e derretida), anos mais tarde, da sede da CBF.
Sim, a conquista foi usada pela ditadura militar brasileira como instrumento de propaganda do regime. O então prefeito “biônico” de São Paulo, de triste lembrança, comprou com dinheiro público e presenteou cada jogador com um fusca novinho em folha. Nas escolas e nas ruas cantava-se a música tema que falava em “90 milhões em ação, todos num só coração”. Tempos de repressão, de “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Tristes memórias também. Literalmente, “a pátria em chuteiras”, como escreveria Nelson Rodrigues.
O futebol já serviu para muitas coisas, boas e más, não somos ingênuos nem aprendizes. Já ajudou também a elevar a autoestima do brasileiro, a negar o complexo de “vira-lata”, a construir uma parte da identidade nacional. Foi cantado, estudado, criticado, analisado, filmado, escrito, recitado, sonhado, projetado. Foi vendido e comprado a preço vil, roubado, sequestrado, manipulado. Também fez garotos e garotas pobres, das periferias e rincões sonharem e alguns, muitos na verdade, a terem sonhos realizados como jogadores e jogadoras profissionais, a vestirem a mítica camisa amarela representando o Brasil em mundiais. O futebol é tudo isso e muito mais, foi ou ainda será.
Depois da ressaca de 2014, da vergonha dentro e fora de campo, com sete a uns e roubalheira na construção de estádios que elitizaram o esporte mais popular do país, hoje começa na grande, polêmica, complexa e distante Rússia, a vigésima primeira Copa do Mundo de Futebol masculino da FIFA. Sim, porque o futebol feminino ainda carece de tanto reconhecimento e apoio, que quase sempre fica só na promessa. E a entidade dona do torneio é privada, não é uma organização filantrópica (ou seria “pilantrópica”, como dizia meu saudoso amigo Marco Brige?). E as TVs ao redor do mundo, e a publicidade e os patrocinadores e as marcas todas investem e ganham fortunas em dinheiro com esse que é o megaevento esportivo mais importante do planeta. É apenas futebol, mas nós gostamos.
Foto: Lemyr Martins/Veja