Concluí recentemente a leitura de algumas obras relacionadas às tecnologias, aos dados e ao capitalismo de vigilância e cheguei a uma constatação assustadora. Vivemos para consumir, gerar dados e trabalhar. O tempo do desfrute, do ócio, do intervalo, da pausa; o tempo que não gera dados, não gera dinheiro e não gera consumo estaria, por isso, em extinção.
Estamos todos exaustos e sendo vigiados permanentemente (e cada vez mais, especialmente se tivemos o privilégio de transpor o trabalho para o regime remoto) em um círculo vicioso que parece não ter fim.
A tecnologia e a forma como vemos as tecnologias podem ser uma chave de compreensão para entendermos o que se passa. Especialmente, se entendermos que as tecnologias (como estruturas estruturantes da nossa sociedade) são aceleradoras da nossa existência. Ou seja: elas não são “apenas” dispositivos que “roubam nosso tempo” ou que “prendem a nossa atenção”.
Elas são a porta de entrada para todo um universo de aprisionamento do nosso tempo e da nossa atenção (isso, porque nem quero aqui nesse texto entrar nas questões de segurança e privacidade e me aprofundar nos excessos de individualismo e consumismo).
Tecnologia e progresso
Antes de mais nada, é importante visualizar que temos uma ideia de tecnologia sustentada no modelo norte americano, que nos fez acreditar que tecnologia e progresso caminham juntos; e que, portanto, contém a ideia de que questionar qualquer aspecto de qualquer face das tecnologias é ser “anti progresso”. Não sou anti progresso.
Acredito que podemos seguir existindo e “evoluindo” sem necessariamente estarmos sempre travando uma competição predatória pelo crescimento e pelo desenvolvimento (também tecnológico, mas não só), que um dia levará o planeta à sua completa destruição.
E esta ideia “alternativa” de progresso não cabe na concepção de tecnologia na qual fomos levados a acreditar. Ou melhor, não cabe na agenda tecnológica que fomos induzidos a aderir.
Existe um trabalho extremamente bem executado de construção cultural de uma crença nas tecnologias enquanto endereçadoras apenas de avanço. Ancoradas neste louvor instituído, as grandes corporações de tecnologia foram criando e nutrindo uma trama sedutora e aparentemente inescapável que hoje captura todo nosso tempo.
Mesmo quando não estamos online, estamos transmitindo informações por meio de nossos aparelhos para as empresas que sabem – por exemplo – quanto tempo e em que horários nossa atenção não está em conexão com a rede.
Não são apenas ferramentas
Enquanto acharmos que as tecnologias são apenas aparatos, seguiremos atrapados. Precisamos compreender que as tecnologias espelham toda uma ordem institucional, conformam um espírito de época, prescrevem uma cultura e portam uma agenda política. E hoje, configuram nosso tempo, buscando direcionar toda a nossa experiência para o trabalho, o consumo ou a geração de dados (ou nos atribuindo uma existência marginal).
Em suma: as tecnologias direcionam nosso tempo para uma existência meramente comercial e majoritariamente individual(izada).
A solidariedade e a justiça social não cabem nesta agenda tecnológica, nem na ideia de progresso a ela atrelada, nem na concepção de indivíduos que as interessa (consumidores-geradores-de-dados-empreendedores-de-si).
O tempo da comunhão e o tempo da convivência atrapalham esse projeto e por isso são condenados por ele.
Capitalismo “dadocêntrico”
Em Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política (Ubu Editora, 2018), Evgeny Morozov chama atenção para “o modelo de capitalismo “dadocêntrico”, que “busca converter todos os aspectos da existência cotidiana em ativo rentável” e que “assim que se acrescenta a eles uma camada de informação, perdem-se outras camadas, sobretudo aquelas de caráter não utilitário, de desfrute puramente estético, de solidariedade e justiça”.
O autor lança um olhar para a algoritmização da vida a partir da nossa experiência cada vez mais indexada pelas relações com as redes sociais e as plataformas digitais. Na obra, ele analisa a ação articulada das cinco grandes tech mundiais (Google, Microsoft, Apple, Amazon e Facebook) na criação e na operação de um projeto de dataficação da existência.
Ou seja: estamos involucrados com as tecnologias, nossa vida é indexada pela relação com uma concepção específica de relação com estas tecnologias (o modelo norte americano), somos geradores de dados e uma das consequências mais perversas desta trama é que o nosso tempo está totalmente capturado para os dados e, por consequência, para o consumo (e o trabalho).
O tempo não comercial (ou seja: o tempo do não consumo, do não trabalho ou não gerador de dados) parece estar com os dias contados, no futuro sombrio que Morozov vislumbra para a humanidade, caso sigamos nesta toada.
A boa notícia é que não precisamos seguir nesta toada. O autor propõe que abandonemos a dialética tecnologia/progresso, porque “o verdadeiro inimigo não é a tecnologia, mas o atual modelo político/econômico” que faz com que vislumbremos a tecnologia como vetor “desumanizador” da nossa experiência. O que desumaniza não é a tecnologia, mas o modelo econômico e político conectado a ela.
Movimento desumano e sem sentido
Esta desumanização, portanto, se dá – entre outras coisas – por meio da pressa e da aceleração que, supostamente, nos conduziriam a um hipoteticamente almejado desenvolvimento. Trata-se de um regime de controle baseado na velocidade como violência, que no mantém atrapados em hipermovimento. Sem sair do lugar, mas exaustos. Em “Sociedade da transparência” (Vozes, 2018), Byung-Chul Han chama esta hiperaceleração de obscena, já que “não é realmente movente e tampouco leva adiante”.
Isso quer dizer que estamos always-on, sempre cansados, nutridos pela ilusão tecnológica, entretidos pelo atordoamento, vigiados pelos nossos próprios dados, convertidos em consumidores-mercadoria. Sempre em movimento, mas sem sentido. “O movimento desaparece menos na imobilidade do que na velocidade e no aceleramento; ele se dissolve naquilo que impinge o movimento ao extremo, roubando-lhe a direção”, afirma Han.
Trata-se de um “frenesi em suspensão”, como sugere Hartmut Rosa em Aceleração: a transformação das estruturas temporais na modernidade (Editora Unesp, 2019). O autor alemão diz que “vivemos em estado de paralisia frenética”, que seria “a soma da compulsão à transformação com a tendência ao enrijecimento”.
Em “Tecnodiversidade”, Yuk Hui (Ubu Editora, 2020) afirma que a “aceleração tecnológica é historicamente necessária para a globalização, já que países não ocidentais só puderam adentrar a arena geopolítica dominada pelo Ocidente a partir da criação de um amálgama de alto custo-benefício entre tecnologia moderna, mão de obra barata e natureza barata”.
Desacelerar é preciso
O autor compreende o processo de modernização como forma de sincronização. “A tecnologia moderna sincroniza histórias não ocidentais no eixo de tempo global da modernidade ocidental”. Ele sugere que, para escapar da sincronização trazida pelo eixo de tempo global da modernidade ocidental, precisamos desacelerar como sugere Hartmut Rosa.
No fundo, esta ligação que Hui faz nos mostra que a reflexão sobre as tecnologias não é um debate para especialistas. Precisamos todos compreender a centralidade das tecnologias nas nossas vidas e a forma como elas – imersas em uma aura positiva e “disfarçadas” de apenas ferramentas – estão (junto com outros vetores) acelerando, individualizando e (por que não?) comercializando a nossa experiência.
Por isso, é importante compreender a agenda da desaceleração como uma agenda política, conectada à plataforma do decrescimento e à necessidade de escaparmos do capitalismo de vigilância, redescrevendo a nossa concepção de tecnologia, abrindo espaços para as tecnodiversidades propostas por Hui e para engendrar novas formas (decoloniais) de conexão e comunicação a partir de outras tecnologias e de uma agenda tecnológica conectadas com o tempo do vivido e o tempo do Outro.
Somente neste tempo haverá espaço para o comum.