Questões de Gênero e suas implicações
por Erane Paladino
Ao caminhar pela Paulista, a meu lado observo uma jovem trans imponente e elegante. Mais um pouco à frente, um homem trans acena para um taxi. Lembro que, há algumas décadas atrás, esta cena seria praticamente impossível. Manifestações transgênero ou quaisquer outras que escapassem do modelo padronizado de identidade eram marginalizadas. Não à toa, o número de suicídios entre estas pessoas era muito significativo. Ser homossexual também já significou desvio patológico, e chegou a levar muitos a se reconhecerem como doentes incuráveis. Numa sociedade machista e hipócrita, quantos não chegavam a casar num modelo heterossexual para garantir algum pertencimento na vida social e, especialmente, para obter reconhecimento profissional?
A considerar, inclusive, alguns valores religiosos tradicionais, podemos constatar a história a caminhar muito lentamente e com movimentos pendulares.
Em 1952, na primeira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-I), a homossexualidade, por exemplo, estava incluída nos distúrbios sociopáticos da personalidade, como um desvio sexual envolvendo comportamento patológico. Em 1968 passou a pertencer a classe dos desvios sexuais e somente a partir da terceira edição do DSM em 1987 foi finalmente retirado do Manual.
O transexualismo, por sua vez, surge na terceira edição classificado como uma disforia (desconforto persistente) de gênero, sendo revisto em 1994 com o diagnóstico de transtorno de gênero.
Este processo de patologização da homossexualidade e do transgênero, foi delineado formalmente nas primeiras discussões, no século XIX por autores como Krafft-Ebing, na Alemanha. Estes entendiam esta prática associada ao desvio sexual, à degeneração e psicopatia. Sob a influência do positivismo e de idéias desenvolvimentistas, Freud escreveu em 1905 os Três Ensaios sobre a sexualidade e apontou como aberrações sexuais os desvios, as inversões (ou o que chamou hermaftroditismo psíquico) e o comportamento perverso.
Por esta razão, o preconceito persiste, embora seja possível observar algum movimento a caminho da tolerância. Mas a transformação vem a passos duros e pesados. Elizabeth Roudinesco, psicanalista e historiadora contemporânea alerta para evitar-se o reducionismo muitas vezes estimulado pelas ciências positivistas, na tentativa de normatizar categorias de comportamento e discriminar o que pareça estranho. Esta dinâmica reduz os sujeitos a sistemas fechados que desconsideram as subjetividades e singularidades. Freud, em seu artigo sobre “ O Estranho”, mostra o que é perturbador para nós como algo que também nos é familiar, mas obscuro. Associa-se a dinâmicas infantis recalcadas, impedidas de serem despertadas. O preconceito e a rejeição ao que nos é “estranho” pode ser uma defesa com o “sombrio” presente em nós mesmos. Talvez seja por esta razão a dificuldade para se superar preconceitos. Sexualidade desperta muita curiosidade pois diz respeito a desejos silenciosos e rechaçados.
Para a filósofa Judith Butler gênero seria “um modo de abraçar ou concretizar possibilidades, um processo de interpretar o corpo”. Nos dias de hoje, este debate visa descontruir a padronização do modelo biológico e anatômico para definir sexualidade e considera a constituição da identidade e do gênero uma orientação dinâmica atravessada pela construção da história pessoal, das relações e da cultura. O chamado modelo “heteronormativo” estabelece apenas uma forma de expressão. Para a autora, é necessário rever a coerência entre sexo, gênero, prática sexual e desejo.
E eu ainda espero muito por dias onde as escolhas pessoais, bem como a vida íntima e privada de cada um deixem de ser uma questão. E o respeito às singularidades e às diferenças certamente, trará muito mais criatividade e diversidade. Ou como diz Judith Butler:
“ Como corpos, nós somos sempre algo mais, e algo outro, do que nós mesmos”.
Erane Paladino