Meu aparelho celular vibra (porque deixo sempre no modo “vibracall” ou silencioso, abomino os toques estrambólicos que andam por aí em aparelhos alheios, interrompendo de forma inconveniente sessões de cinema, palestras, consultas, aulas, reuniões etc, onde deveria prevalecer o bom senso coletivo, enfim…). Do outro lado, alguma voz de funcionário(a) de empresa de telemarketing chama pelo nome da minha esposa, diz que “para sua segurança a conversa estará sendo gravada” e pede que eu confirme os meus (ou da Titi?) dados pessoais. Explico que aquele número não é o do celular da Ana Cristina/Titi/minha esposa e pergunto se o meu interlocutor quer falar com ela, por que ligou para mim? “Esse número consta em nosso cadastro, senhor”, ouço da voz adestrada do telemarketing. Ah, sei… E como você ou melhor, a empresa na (ou para) qual trabalha tem meus dados, da minha esposa, quer que eu confirme isso e aquilo para a “minha” (risível e absurdo) segurança e eu nem sei quem você é, o que quer, porque tem nossos dados e ainda por cima liga em uma hora inapropriada…? Desligo. Uma, duas, n vezes.
Todo mundo já deve ter passado por situações como essa, muitas vezes e até piores. Nossas informações pessoais, residenciais, familiares, comerciais, bancárias, de todos os tipos, até nossas preferências futebolísticas, políticas, sexuais, gastronômicas, culturais, consumistas (ou não), gostos, desejos, opiniões, manias, taras, sonhos, perversões devem estar registradas em algum (ou vários, muitos) bancos de dados, cadastros, registros. E tais informações são usadas livremente por empresas, governos e demais instituições que compram e vendem esses dados, jogam e lucram alto com eles. George Orwell estava certo. 1984 aqui e agora! Fahrenheit 451 ao vivo. Admirável (velho) mundo novo. Hoje, com tudo conectado ao mesmo tempo agora, big data e o escambau tecnológico, mais ainda. Máquinas, redes, algoritmos, robôs de vigilância e controle, “fake news”. Tem gente que se delicia com o panorama e ainda faz apologia de toda essa “maravilhosa” parafernália, como se zuckerbergues, bezos, gates, ex-jobs e tantos outros fossem filantropos bem intencionados, porta-vozes de alguma instituição de caridade das velhinhas bondosas do reino mágico de Oz. Para quem nasceu para ser Poliana e quiser acreditar…
Processos eleitorais, mercados especulativos, publicidade cada vez mais dirigida, comportamentos monitorados e sugeridos. Há quem lucre cada vez mais com tudo isso, manipulando consciências e inventando tendências, mais consumo, mais necessidades fúteis, artimanhas sofisticadas e renovadas. Até em quiosques de galerias tipo “ching ling” por aí ou sites pra lá de duvidosos é possível comprar arquivos recheados de dados que alguém provavelmente surrupiou ou “conseguiu” em cadastros de clientes de empresas de vários segmentos.
Aqui embaixo, na planície dos cidadãos comuns, precisamos nos defender de alguma maneira. Leis de proteção de dados, regulamentações e regulações em várias áreas são bem-vindas e necessárias, desde que formuladas a partir de princípios democráticos, amplos, transparentes, com respeito à cidadania, aos direitos humanos, aos indivíduos e coletividades. São importantes e urgentes. Mas sozinhas não farão frente a essa invasão bárbara das nossas vidas e da utilização dos nossos dados e hábitos cotidianos como mercadoria altamente rentável, política e economicamente.
Atualmente, 120 países possuem leis de proteção de dados e 90% deles têm uma autoridade nacional independente que atua para regular e equilibrar a proteção da privacidade e o livre fluxo de dados nos casos necessários. No Brasil, desde 2010 o ministério da Justiça havia proposto uma primeira versão de um projeto de lei nesse sentido e agora, em 2018, o Congresso Nacional, em suas duas casas, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, aprovou o PL 53/2018, que institui uma Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que vai para sanção presidencial e, se tudo correr bem, deve entrar em vigor 18 meses após sua aprovação pelo poder executivo.
A lei é positiva, benéfica, necessária, vem em boa hora. Um dos pilares é o entendimento que para coleta, processamento ou transferência de dados de alguém é preciso ter a permissão do titular desses dados, o seu consentimento explícito. Mas, por outro lado, também há no seu texto alguns pontos omissos e outros que podem dar margem a interpretações dúbias. Há partes da lei, por exemplo, que se podem vir a se chocar com a legislação já existente, como a regulamentação do acesso à informação.
Está prevista também a criação de uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados, com poder regulatório, sancionatório e independente de governos, a exemplo do que acontece na União Europeia e em alguns outros países. Espera-se que não haja veto presidencial à criação desse órgão regulador ou que, como ventilou-se recentemente, ele não fique na órbita do poder executivo, mas tenha a independência necessária e desejada.
A lei, por si só, certamente não resolverá todos os problemas nessa área, não é uma panaceia ou elixir mágico. Mas é um passo importante para mudanças necessárias, com adaptações das empresas e governos a uma realidade mais contemporânea e dentro de parâmetros internacionais de tratamento, circulação, segurança e proteção das informações. Porque os seus e os meus dados estão rolando. Aposto que, neste exato momento, alguém está jogando e lucrando com as nossas informações pessoais.
Como sugestão, vejam abaixo os links para duas ótimas matérias do Nexo Jornal sobre temas relacionados: