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Precisamos lembrar que o bife não nasce numa bandeja de isopor

Durante a greve dos caminhoneiros, ocorrida entre o final de maio e o começo de junho deste ano, circularam nos meios de comunicação, especialmente nas redes sociais, imagens de caminhões parados nos bloqueios com “carga viva”. Essa carga estaria morrendo parada na estrada, sem água e sem comida suficiente para aquele período. De fato, muitos caminhões nesse estado ficaram alguns dias parados e depois foram liberados para seguir viagem justamente por transportarem seres vivos. Mas você sabe o que é “carga viva”? E você sabe de onde eles estavam vindo e para onde foram quando liberados pelos grevistas?

Provavelmente a resposta é não para as duas perguntas e a culpa não é sua. Mas vamos por partes: carga viva é o nome dado para o transporte de animais. Pode ser um cavalo indo para uma competição, por exemplo. Mas a maior parte do transporte de carga viva que circula pelas estradas de nosso país é de animais saindo de granjas, fazendas e outros lugares onde são criados e indo para o abatedouro. Não é muito bom ler isso, não é? mas é importante. Precisamos lembrar que o bife de todo dia veio de uma vaca, um ser vivo que morreu para nos alimentar – ou melhor, para virar produto da indústria.

Outra questão que apareceu muito durante a greve foi a falta de ração para esses locais de criação de animais, especialmente granjas. Notícias sobre animais estressados, praticando canibalismo e, claro, morrendo, apareceram em vários veículos. Todas as pessoas se chocam, porque parece e é cruel, mas poucos são os profissionais que explicam o que realmente acontece e o que leva os animais a isso.

Por que os frangos e porcos  estavam se matando e se comendo? Porque eles vivem em espaços minúsculos, confinados, recebendo ração cinco vezes por dia para engordar rapidamente. Completamente condicionados, mesmo sem fome o tempo todo, o animal espera comida. Ela não vem e o stress piora. Piorando, começa a violência. Pelo confinamento os animais mais fracos, aqueles que por seleção natural seriam atacados pelos mais fortes, não conseguem fugir. E assim milhares de animais morreram no período da greve (e depois) e tiveram que ser incinerados.

Pode parecer que eu esteja fazendo aqui uma ode ao fim do consumo de carne, mas não é isso. Acredito, particularmente, que o homem seja mesmo onívoro. Por questões de evolução cultural e biológica, nosso espécie é habilitada a comer de tudo. Pode ter sido essa habilidade que nos ajudou a “vencer” na escala biológica. O sociólogo francês Edgar Morin disserta na obra “O Enigma do Homem – por uma nova antropologia” sobre a transformação que o consumo de carne, especialmente a cozida, significou para o nosso cérebro. Ele argumenta, baseando-se em evidências da nutrição, que o consumo de carne foi essencial para o desenvolvimento e que o ato de nos reunirmos em bandos para caçar foi um dos pilares estruturais das nossas sociedades.

Assim, o importante não é necessariamente deixar de comer carne – o que, claro, é uma escolha justa e muitas vezes necessária. Mas precisamos urgentemente olhar para o modo como a carne que consumimos é produzida, do nascimento desses animais ao modo como eles morrem e são processados, até chegarem ao nosso prato. O filósofo e professor australiano Peter Singer, um dos maiores defensores da causa animal no mundo, defende que a nossa ignorância sobre a indústria da carne no mundo condena milhões de animais a uma vida indigna todos os dias. O eterno Paul McCartney tem uma frase famosa sobre o mesmo tema: “se as paredes dos matadouros fossem de vidro, todos seriam vegetarianos”.

Estamos criando uma geração de crianças que não sabe de onde vem a bandeja de carne moída vendida no supermercado. Muito provavelmente acha que brotou ali, assim como a caixa de leite. Para conscientizar essas gerações, e mesmo as anteriores, os veículos de comunicação precisam informar sobre todo o processo de produção, o que justamente não aconteceu durante os recentes episódios da greve dos caminhoneiros, e que raramente é.

Desse modo cabe a nós cobrar e buscar informação. Em países da Comunidade Europeia a rastreabilidade dos alimentos é uma realidade. Com um QR Code na etiqueta dos produtos é possível saber de onde veio o bife ou o filé de peito comprado: onde o animal foi criado, como foi abatido e transportado. No Brasil nem 5% da nossa produção de carne é passível de rastreio pelos consumidores. Nós precisamos cobrar essas práticas das indústrias e temos que ensinar nossos filhos a fazer o mesmo. Poderemos manter o churrasco tradicional, mas certamente teremos que saber cada vez mais detalhes sobre o que colocamos no prato, além de reduzir drasticamente as porções.

Porque outro fator que leva o mercado a produzir mais e mais carne é o excesso de consumo que temos nas classes mais favorecidas. Só que devemos pensar que naquele delicioso Picadinho há ingredientes que vieram de seres vivos e devemos nos preocupar em honrar aquele animal, o que o sistema de produção industrial definitivamente não permite.

Muitos consumidores já exigem selos comuns em outros países, como o de bem-estar animal, e valorizam aquelas marcas que garantem tratar os animais com dignidade – como frangos e porcos criados livremente, por exemplo. A indústria prefere o confinamento porque o animal engorda muito mais rápido e é abatido precocemente, virando lucro de modo expresso. Na criação ao ar livre o processo de engorda e crescimento é lento, mas é uma tendência inevitável. Quanto mais conscientes formos, mais iremos exigir que os animais que nos alimentam pelo menos tenham tido uma vida minimamente razoável (o que não acontece no modo de produção industrial intensiva) e que morram sem dor. Ninguém gosta de ficar confinado? Por que uma galinha ou um porco gostariam? Ter consciência dói, incomoda, mas torna a vida muito mais viva e significativa.

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