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Portugal, África e Crocodilos

Miguel Gomes, cineasta português, é convidado para a FLIP deste ano por estar desenvolvendo uma versão cinematográfica de Os Sertões  de Euclides da Cunha, autor homenageado. Voltar a seu filme TABU de 2012 poderá antecipar à nossa curiosidade algumas suposições em relação a esse seu novo projeto.

PORTUGAL, ÁFRICA E CROCODILOS

O filme TABU ganhou o prêmio da crítica do Festival de Berlin (2012) e manteve um público fiel por longos meses em São Paulo. Ele estabelece uma aproximação entre Portugal e África a partir da história de Aurora, uma mulher que viveu nos dois contextos.
Uma introdução nos conta a triste história de amor de um explorador branco em África. Em seguida, duas narrativas, que são descritas em seguida, se mesclam. 

A primeira nos conta a história de Aurora, já idosa, convivendo com uma empregada nascida em Cabo Verde (Santa) e tendo como vizinha e amiga uma mulher dedicada a causas sociais (Pilar). O estado físico emocional de Aurora piora dia a dia, assombrada por impressões e sensações estranhas. Até que indica a necessidade de falar com uma pessoa de seu passado, que Pilar fica encarregada de encontrar.
Na segunda narrativa, temos a apresentação da juventude de Aurora em uma fazenda africana, seu casamento e o relacionamento amoroso com outro homem. Essa segunda narração acontece em flashback com a voz do narrador se sobrepondo às imagens como se fosse uma espécie de filme mudo.  

Dessa forma, acompanhamos experiências e aspectos das culturas da África e de Portugal.
A vida da protagonista na África teve privilégios de sua classe social. O diretor não poupa críticas. Identificamos oposições significativas: o negro africano no resguardo de suas tradições e o explorador branco e seu mundo de trivialidades. Ainda temos a sanidade e a loucura, a racionalidade da civilização e os mitos da natureza selvagem, Santo Antônio a salvar e o Diabo a cobrar o que lhe é devido.
Porém, além desses aspectos mais claramente percebidos, há outros mais sutis. Há o sonho de Aurora com os macacos, cenas com outras estranhezas e a figura de um crocodilo que se faz presente do início até o fim do filme.  
Detalhes como esses não nos deixam sossegados. A partir deles, cria-se um campo para múltiplas interpretações. A simplicidade da narrativa é só aparente, pois há elementos que juntos à ironia e à caricatura/alegoria instituem um campo simbólico ambíguo e rico. De forma sutil criam um apelo e uma beleza que nos aprisionam o pensamento. 
A imagem do crocodilo que nos acompanha por todo o filme surge como um animal e como objeto de decoração em shopping urbano. Ele é recorrência em mitologias antigas com o nome de Leviatã, símbolo bíblico ou como Sobeck, na mitologia egípcia. É representação das trevas e da morte, da rudeza e força instintiva. 
Na história de Aurora, esse animal de tantas referências mitológicas faz parte do cenário africano, chega perto dela como um presente que acaba aproximando Aurora do proibido, do objeto de amor e de traição. Proximidade que indica o perigo e a destruição da paixão. 
Miguel Gomes vai nos oferecendo material para a reflexão referentes ao mundo da memória e do passado na vida da personagem. Ele também nos indica questões relativas ao mundo presente em situações políticas e ideológicas. 


Não há paraísos no mundo dos africanos organizado segundo suas tradições e rituais. Parece que lá também não cabe senão um modelo de aceitação nas situações de vida. Na verdade, pode ser modelo de submissão a forças maiores sejam as do submundo, sejam as da natureza. Esta perspectiva pode parecer cruel, mas ela nos é oferecida com beleza, talento e inteligência. 
É sempre muito pessoal a cosmovisão do diretor de cinema. É ainda mais subjetiva a interpretação que você lê agora, porque parcial e incompleta. Portanto, há lugar para a discordância e para a pesquisa de outras possibilidades. 
Mas, se você assistir ao filme, não poderá mais esquecer da cena em que há a ausência do som da fala enquanto ouvimos o barulho das pedrinhas que caem na água. Ou então do grupo de jovens em cima da árvore como em um cartão postal ou do som musical incrível tão fora do contexto africano. A imagem de um guarda-chuva quebrado de um mestre que vai embora. Ou então a de Mário e amigo correndo pelos caminhos de África, donos do mundo. Tudo lindo e em P&B. Tudo isso fará muito sentido dentro da proposta estética do diretor Miguel Gomes. 
Daí que é notícia boa sua intenção de uma adaptação para o cinema de Os Sertões, uma obra literária tão complexa.  A partir do filme TABU percebemos que ele tem repertório e competência técnica para essa enorme tarefa. Esperemos a notícia do lançamento de seu próximo filme já denominado Selvajaria. 
Enquanto isso, não percamos o filme Tabu disponível no Youtube. 
https://www.youtube.com/watch?v=v2Sh-6PBXiw

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