Está rondando os corredores e gabinetes do Congresso Nacional um tema polêmico e controverso, com muitos grupos de pressão, lobbies e interesses bilionários em jogo. O projeto de lei 6299/02, também conhecido como projeto da nova lei dos agrotóxicos ou chamado de “pacote do veneno” pelos seus opositores foi aprovado no final de junho em comissão especial da Câmara dos Deputados. Deve seguir ainda para votação no plenário da Câmara, depois no Senado e finalmente para sanção presidencial. O autor do projeto é o atual ministro da Agricultura, fazendeiro e grande produtor de soja no Mato Grosso, onde foi governador (2003-2010). O relator do projeto é deputado federal pelo Paraná, agricultor alinhado com a chamada bancada ruralista.
A lei atual, 7802/89, que regula o uso, pesquisa, registro e comercialização de substâncias agrotóxicas tem quase 30 anos e os defensores do atual projeto alegam que ela está desatualizada. Por outro lado, mais de 300 organizações da sociedade civil e instituições como a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), Instituto Nacional do Câncer, Anvisa, Ibama, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Ministério Público do Trabalho apontam riscos que a aprovação do projeto traria para o meio ambiente e para a saúde da população, seja para os agricultores que estão em contato direto com os agrotóxicos e para os consumidores finais desses alimentos.
O projeto em questão propõe uma flexibilização nas regras para aplicação e fiscalização do uso de agrotóxicos na lavoura. Por exemplo, altera o termo agrotóxico para “defensivos fitossanitários e produtos de controle ambiental”. As palavras e as coisas. Os apoiadores da mudança na nomenclatura alegam que o termo é depreciativo e pouco usado fora do Brasil. Ora, o que deveria estar em questão é o uso e o impacto desses produtos químicos na saúde das pessoas, animais e no meio ambiente. Se os termos mais usados internacionalmente equivalem a “pesticidas”, “defensivos agrícolas” ou o que seja, atenuar a palavra agrotóxico para algo menos impactante, com maior aceitação, não parece ser algo de boa fé, como se diz popularmente.
Mas as controvérsias não ficam só nesse ponto, por si só bastante questionável. Atualmente, a liberação do uso de novos agrotóxicos no país deve passar por pelo menos três níveis de avaliação, do Ibama (impactos no meio ambiente), Anvisa (impactos na saúde humana) e Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA (impactos na agricultura). O projeto 6299/02 defende a criação de uma única instância reguladora, uma Comissão Técnica Nacional de Fitossanitários (CTNFito), no âmbito do Ministério da Agricultura. Um único órgão teria o poder de decisão, aprovando ou vetando novos agrotóxicos. Os defensores da proposta argumentam que na atual legislação existe uma demora muito grande nesse processo. A pressa pode ser um risco ainda maior nesse caso.
Falando em riscos, o artigo 22 do projeto propõe que só seja proibido o registro e uso de agrotóxicos que apresentem risco inaceitável comprovado cientificamente. Porém, a lei atual (7802/89) proíbe claramente o registro e utilização de defensivos que revelem características teratogênicas, cancerígenas ou carcinogênicas, mutagênicas, distúrbios hormonais e danos ao aparelho reprodutor. Há riscos à saúde mais inaceitáveis que esses? Abrandar essas restrições traria mais riscos ainda que os já existentes. A quem interessaria isso?
O projeto 6299/02 pode ser visto como uma peça de horrores, escrito, revisto e aprovado em primeira votação por quem defende interesses econômicos e políticos diretamente ligados aos setores que lucram, e muito, com a produção, comercialização e uso dos agrotóxicos na agricultura. Dados de 2015 mostram, por exemplo, que naquele ano a comercialização de agrotóxicos alcançou R$ 32 bilhões. De acordo com estudo da ONU, os agrotóxicos são responsáveis pela morte de 200 mil pessoas por intoxicação aguda a cada ano, mais de 90% nos chamados países em desenvolvimento. Pesquisa realizada em 2016 pelo Ibope, a pedido da ONG ambientalista Greenpeace, revelou que 81% dos brasileiros considera que a quantidade de agrotóxicos aplicada nas lavouras é “alta” ou “muito alta”.
Sem dúvida, a atividade agrícola é essencial e contribui de forma significativa para a produção de alimentos para o mercado interno e “commodities” para exportação, geração de renda, de empregos diretos ou indiretos, para o crescimento do país. Novas tecnologias e inovações são bem-vindas para melhorar a produtividade e as condições de trabalho no campo, desde que seguras. Não podemos esquecer que 70% dos alimentos hortifrutigranjeiros que abastecem as famílias brasileiras são provenientes da agricultura familiar, não das grandes monoculturas e latifúndios agroexportadores. E a agroecologia, a agricultura orgânica, as formas sustentáveis de extração e produção estão crescendo, ganhando espaço nesse balanço econômico e oferecendo alternativas menos impactantes do ponto de vista socioambiental, com menos desperdício de recursos hídricos e naturais. Há, portanto, outros caminhos, soluções mais criativas, social e ambientalmente responsáveis e sustentáveis. Não há falta de alimentos hoje no mundo. Há sim uma distribuição desigual e muito desperdício, com milhões de pessoas sem acesso aos alimentos básicos para suas necessidades diárias.
Um outro projeto, o PL 6670/2016 propõe a criação de uma Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNaRA). Está aberta uma coleta pública de assinaturas em apoio, com quase 1,2 milhão de adesões até o momento e podem ser muito mais. Cada cidadão pode conhecer o projeto e somar-se à iniciativa pelo site www.chegadeagrotoxicos.org.br.
Informação sempre é um bom remédio para combater os venenos. O documentarista Silvio Tendler, um dos mais importantes cineastas brasileiros, autor de filmes memoráveis como “Os anos JK” (1980) e “Jango”(1984), realizou em 2011 o documentário “O veneno está na mesa”, que reúne depoimentos de especialistas no tema e cidadãos que vivem no dia a dia o impacto e as consequências dos agrotóxicos e dos transgênicos na agricultura brasileira. Em 2014 Tendler produziu a segunda parte do documentário, mostrando alternativas possíveis a partir de experiências da agricultura familiar e agroecologia.
“Sí, se puede!”. Essa frase emblemática que virou um “slogan” poderoso nas lutas camponesas e nos movimentos sociais e sindicais a partir da organização dos trabalhadores agrícolas imigrantes, nos Estados Unidos, e depois se espalhou pela América Latina, inspirou também a versão do “Yes, we can!” da campanha vitoriosa de Barack Obama à presidência, em 2008. Seu autor, César Chávez (1927-1993), um camponês mexicano- estadunidense que junto a Dolores Huerta fundou no início dos anos 1960 a UFW – o sindicato dos trabalhadores rurais e foi um grande líder na luta pelos direitos civis dos camponeses imigrantes, um ícone dos trabalhadores latinos, lutou por décadas contra a proliferação do uso de agrotóxicos nas grandes plantações de frutas, sobretudo nos estados da Califórnia e da Flórida, maiores produtores. A História nos mostra, nos inspira. Nós podemos!
Foto: Hedeson Alves/Fotos Públicas