Esta sensação de extenuação coletiva não é apenas fruto da escolha de cada um(a). A lógica do progresso, a cultura da velocidade, o vício nas tecnologias, o consumo desenfreado e a hiper produtividade caminham de mãos dadas e estão gerando uma legião de pessoas exauridas.
Por Michelle Prazeres*
Estamos exaustas(os). Exauridos(as). Extenuados(as). Abatidos(as). E desde o começo deste ano, tenho visto uma série de memes e prints com anedotas sobre nosso estado coletivo de exaustão.
Acho o humor uma válvula importante para lidar com os problemas e para denunciá-los. Mas tenho pensado – quando vejo essas piadas – que precisamos parar de normalizar a exaustão.
Existe uma expressão, conhecida no movimento slow, para isso: stop the glorification of busy – ou “parem de glorificar o ocupado”. Agora, além de não glorificar o ocupado e além de não romantizar o esgotamento, a tarefa que se impõe é a de não naturalizar a exaustão como algo dado. Afinal de contas, somos humanos. Precisamos olhar para isso. Ou vamos seguir adoecendo?
A pandemia piorou as coisas
Vínhamos de uma jornada desgastante do ponto de vista coletivo – especialmente se você é brasileiro(a) -, atravessamos uma pandemia que contribuiu ainda mais para naturalizar o multitarefas (fazermos múltiplas coisas ao mesmo tempo).
Estamos aos poucos buscando o que estamos chamando de “retorno” a uma vida parecida com a que ela era antes do isolamento social (o normal?), mas sabemos bem que não voltaremos a lugar nenhum. Precisaríamos cuidar deste retorno para saber para onde estamos indo.
Mas não estamos fazendo isso. Estamos tentando desesperadamente “voltar” (à vida, às relações, aos índices de produtividade) sem saber muito bem o que nos tornamos depois disso tudo. Parece que estamos ignorando as sequelas (físicas, mentais, emocionais, humanas) deste período.
A pandemia acelerou ainda mais um processo de “desumanização” que já estava em curso, tendo em vista, especialmente, o isolamento social e o aumento do uso das tecnologias neste período (em alguns casos, uma condição para que a vida seguisse, de algum modo, acontecendo, mas não é este o ponto aqui).
Não temos as mesmas 24 horas
Uma das atitudes importantes para buscar saídas é entender que este movimento não é individual, mas coletivo. Não é fruto das escolhas de cada um, mas de uma cultura estabelecida, do espírito do nosso tempo.
Um dos discursos que mais circulam no universo da venda de soluções milagrosas de “gestão de tempo” é o de que “todos temos as mesmas 24 horas” e que cada um(a) escolhe o que fazer com elas. Acontece que quando pensamos desta forma, deixamos de compreender que a experiência temporal das pessoas é atravessada por marcadores sociais que, especialmente em um país como o Brasil, não podem ser ignorados.
Se você gasta quatro horas por dia para se deslocar até o trabalho, você não tem as mesmas 24 horas de quem trabalha em home office ou de quem gasta menos horas ou não usa o transporte coletivo. Se você cozinha sua própria comida, limpa sua própria casa, tem filhos… cada marcador social (de gênero, raça, classe social, região, etc) vai tornando a experiência temporal mais complexa e diferente para cada pessoa e cada grupo.
Pausa: importante, mas não suficiente
Então, a saída para a exaustão não pode ser apenas a pausa e o autocuidado. Inclusive, a pausa já está sendo apropriada e vem sendo anunciada como “importante para recobrar o fôlego” (ou seja: a pausa para seguir servindo ao regime que te exauriu!); ou ainda como “premiação” (você “merece” um descanso). É por parecer uma dádiva que – no mundo louco em que estamos – as pessoas sentem vergonha em pausar. Se sentem menos se não estão sendo produtivas. Não se sentem autorizadas a descansar.
E isso gera distorções. Por exemplo, como dizer para uma pessoa “desacelerar” quando ela trabalha 14 horas por dia, tem filhos, pega transporte público e mora em uma região afastada do trabalho? O desacelerar vira mais uma das muitas tarefas que ela precisa cumprir? Esta pessoa deveria se sentir mal por não conseguir “se cuidar” diante de tanta pressão?
Pausa não é prêmio. Pausa é condição humana. Autocuidado não deveria ser um luxo. Deveria ser direito de todo mundo – como afirma Antonio Candido – desfrutar do tempo para se humanizar.
Mas a pausa, o autocuidado e o bem estar apontam para soluções individuais: resolvem a vida de algumas pessoas (quem pode?), mas não de todas as pessoas. Por isso, são bandeiras importantes, mas não são suficientes para frear a cultura da exaustão.
Por mais que pareça paradoxal, se quisermos descanso, teremos que agir!
Está na hora de dizer “estou exausta(o)” sem aquela pontinha de orgulho por ser tão necessária(o); sem aquela sensação de conforto na qual nos fizeram acreditar, quando somos muito úteis. Ou até “insubstituíveis”.
Chegou a hora de falar sobre a exaustão que estamos sentindo de forma crítica, buscando soluções em todos os ambientes em que estamos: em casa, na escola, no trabalho, entre amigos.
Está na hora de podermos falar sobre cansaço e burnout nos ambientes de trabalho. Construir culturas de cuidado nas empresas e organizações. Entender que trabalhadores são pessoas com direito ao descanso e a ter vida além do trabalho.
Passou da hora de entender que parte da exaustão é um problema estrutural.
Se na vida, pessoas exaustas não conseguem estar em um lugar com atenção plena, perdem capacidade de compreensão, não oferecem boa escuta e diminui, portanto, a capacidade de se relacionar; se a saúde mental (coletiva) fica comprometida, com mais casos de ansiedade, depressão, estresse e burnout, precisamos olhar para isso coletivamente, cuidar destas pessoas, cuidar para que os ambientes de convivência e trabalho não sejam ambientes de promoção da exaustão, mas sim ambientes de cuidado e convivência.
Se nas redes, pessoas tristes e cansadas consomem mais, precisamos de mais conteúdos de promoção da consciência, de uma legislação que regule o funcionamento destas redes, que breque o ódio, a desinformação, as formas sutis de controle de comportamento das quais as plataformas lançam mão.
Se no planeta, um desenvolvimento baseado em crescimento e desenvolvimento nos levará à destruição, precisamos conhecer mais e melhor as propostas do movimento slow e das plataformas de decrescimento e do bem viver, alternativas sistêmicas que se apresentam ao modelo de vida estabelecido.
Se quisermos transformar a cultura da exaustão, não basta tomar um banho de cachoeira. Precisamos mudar a forma como pensamos o trabalho, o consumo, as relações humanas e a política.
* Michelle Prazeres é jornalista, professora e pesquisadora. Idealizadora do Desacelera SP e mãe de Miguel e Francisco.