O mito hoje
O mundo em que vivemos hoje nos coloca muito mais em contato com os assuntos cotidianos, as notícias do dia a dia e uma infinidade de coisas que tende a nos colocar muito mais em contato com o mundo externo do que com nosso próprio interior. No entanto, de acordo com o mitólogo Joseph Campbell, isso nos afasta da “literatura do espírito” e da “ vida interior”, o que, para ele, é o que realmente “tem a ver com o centro de nossas vidas” (1992:03). Segundo Campbell, quando ficamos velhos e todas nossas necessidades são atendidas, nos voltamos “para a vida interior” e se não soubermos “o que é esse centro”, vamos sofrer. É aí que entram os mitos. De certa forma, eles servem para nos contar a nossa própria história. Para Campbell, “quando a história está em sua mente, você percebe sua relevância para aquilo que esteja acontecendo em sua vida”. Para ele, “isso dá perspectiva ao que lhe está acontecendo”. (1992:04)
Por isso, de acordo com o mitólogo, os mitos e suas informações “têm a ver com os temas que sempre deram sustentação à vida humana, que construíram civilizações e enformaram religiões através dos séculos”. Campbell continua, dizendo que os mitos tem a ver “com os profundos problemas interiores, com os profundos mistérios, com os profundos limiares da travessia”. Ele ainda complementa dizendo que “se você não souber o que dizem os sinais ao longo do caminho, terá de produzi-los por sua conta”. (1992:04)
Em resumo, os mitos, para Campbell, são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana, são experiência de vida que nos ensinam a voltar para dentro e nos conectam com a experiência de estar vivo. Mais do que isso, para Campbell, “aquilo que os humanos têm em comum se revela nos mitos” (1992). Justamente por isso, contamos e estudamos mitos, para compreender a nossa própria história, já que todos nós precisamos compreender e enfrentar a morte, assim como precisamos de ajuda em nossas passagens ao longo da vida. Assim, de acordo com Joseph Campbell, mitos são histórias sobre a sabedoria de vida”.
Apesar de aparentemente esquecido, o mito continua presente em nossas vidas, seja pelas histórias que ouvimos ou por sua presença, ainda que indireta, na mídia.
A jornada do herói
Campbell, em seu livro “O herói de mil faces”, apresenta a ideia de monomito, um mito comum a todos nós. Pensando no que o próprio Campbell (1992) definiu como a “função pedagógica do mito”, que nos ensina “como viver uma vida humana sob qualquer circunstância”, a jornada do herói nos ajuda a compreender cada etapa da nossa jornada, seja de nossa vida como um todo ou das pequenas e grandes jornadas pelas quais nos aventuramos durante nossa trajetória. Nesse sentido, a jornada do herói pode ser considerada “um modelo arquetípico que pode conter sentido e significado para pessoas reais e contemporâneas” (DEL PICCHIA e BALIEIRO, 2010:22).
Como bem resumem Beatriz Del Picchia e Cristina Balieiro, “o modelo da jornada do herói é composto de um ponto de partida – que, de certa forma, é também o ponto de chegada – chamado mundo cotidiano e de três fases: ruptura, iniciação e retorno” (2010:22). Cada uma dessas fases é composta por algumas etapas, sendo que, dependendo da jornada, algumas delas podem ou não ser vividas. Em outras palavras, todo herói vive as três fases, que podem ser compostas de mais ou menos etapas.
As etapas da jornada do herói ou aventura do herói, como Campbell chama, descritas em seu livro “O herói de mil faces” são:
- A partida
- o chamado da aventura
- a recusa do chamado
- o auxílio sobrenatural
- a passagem pelo primeiro limiar
- o ventre da baleia
- A iniciação
- o caminho de provas
- o encontro com a deusa
- a mulher como tentação
- a sintonia com o pai
- a apoteose
- a última benção
- O retorno
- a recusa do retorno
- a fuga mágica
- o resgate com auxílio externo
- a passagem pelo limiar do retorno
- senhor de dois mundos
- liberdade para viver
Para Beatriz Del Picchia e Cristina Balieiro que, além de grandes estudiosas de Campbell também pesquisaram a relação da jornada do herói e a vida de pessoas reais, as etapas podem ser descritas da seguinte maneira:
Mundo cotidiano: o ponto de partida, contexto, passado, origem, história pregressa e para onde o herói retorna.
- Ruptura
- Chamado à aventura: apelo, convocação para o rompimento com o conhecido, crise.
- Recusa ao chamado: dúvidas, hesitações, relutância e recusa em aceitar o chamado.
- Travessia do primeiro limiar: primeira busca ativa de respostas ou soluções para a ruptura que ocorreu devido ao chamado; primeiro momento de ação.
- Iniciação
- Encontro com o mestre: mestres encontrados no caminho.
- Aprendizado: etapa de educação e aprendizado, tanto vivencial quanto intelectual.
- Travessia de novos limiares: comprometimento ainda maior com a mudança, ações e buscas mais radicais.
- Situação-limite: ponto de inflexão que implica provações e sacrifícios ou rendição para poder continuar a jornada.
- Bliss: encontro do “tesouro de cada um”, aquilo que traz sentido e significado à vida.
- Retorno
- Caminho de volta: preparação para viver no “mundo cotidiano” outra vez, mas pessoalmente modificado
- Ressignificado: Transformação pessoal advinda da jornada e do encontro da bliss.
- Dádiva para o mundo: o que se traz como doação concreta para o mundo, de acordo com a bliss.
Para as autoras, é importante lembrar, ainda, que “as etapas não acontecem de maneira linear como no mito” (p. 22). Segundo a observação delas, nas vidas das pessoas “algumas dessas etapas acontecem para todas, são inerentes ao caminho: o chamado à aventura, a travessia, a travessia do primeiro limiar, a bliss, o caminho de volta, o ressignificado e a dádiva ao mundo” (p. 23). De acordo com a observação delas, “as outras etapas podem ocorrer ou não: a recusa, a travessia de novos limiares, o mestre, o encontro com o mestre, o aprendizado e a situação limite”.
Para Christopher Vogler (2006), a jornada do herói também está dividida em doze estágios: mundo comum, chamado à aventura, recusa do chamado, encontro com o mentor, travessia do primeiro limiar, testes, aliados e inimigos, aproximação da caverna oculta, provação, recompensa (apenhando a espada), caminho de volta, ressureição e retorno com o elixir.
Círculos e ciclos
Joseph Campbell, assim como C.G.Jung, pesquisaram sobre os acontecimentos circulares, especialmente os círculos e mandalas, que também possuem um conteúdo mítico. Também Mircea Eliade, ao falar do mito do eterno retorno, abordou esse tema.
Mandala é uma palavra em sânscrito que significa o círculo que é montado ou desenhado simbolicamente, adquirindo um significado de ordem cósmica Quando alguém faz uma mandala, está tentando coordenar seu círculo pessoal com o universal. Muitas cerimônias e rituais indígenas, por exemplo, acontecem em formas circulares.
A própria jornada ou aventura do herói pode ser descrita de forma circular, considerando que o herói parte do mundo comum, para onde retorna. O mito, aliás, rompe com o tempo linear histórico e inclui os ritos e rituais que, de forma circular, “asseguram a continuidade da vida” (ELIADE, 1969:66).
Essa concepção cíclica ou circular de mundo está ligada aos movimentos celestes, especialmente aos ciclos de Sol e de Lua. Mircea Eliade nos lembra que as fases da Lua “desempenharam um papel importante na elaboraçãoo das concepções cíclicas” (1969:101).
Vilém Flusser (2007:69) lembra sobre a “roda do Sol, o círculo do tempo”, que “coloca tudo e todas as coisas de volta no lugar que lhes é devido”. Flusser ainda lembra que “os planetas descrevem órbitas circulares, epicíclicas ou elípticas”.
Nesse sentido, a base da Astrologia está relacionada a esses movimentos circulares e a ideia de ciclos que sempre se repetem. Apesar dos ciclos astrológicos possuírem diversos referenciais, todos eles são circulares e cíclicos. Considerando o homem na Terra como observador, a Astrologia considera o aparente movimento de Sol, Lua e dos planetas ao nosso redor. Além disso, tendo como base o local geográfico no qual está o observador, formam-se as doze casas astrológicas, diretamente ligadas ao movimento diário da Terra em seu próprio eixo, que faz com que tenhamos o tempo dividido em dia e noite.
Leia também – A jornada astrológica na mídia (apresentação de slides)
Referências
CAMPBELL, Joseph (entrevista com Bill Moyers). O poder do mito. São Paulo: Associação Palas Atenas, 1992.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2013.
CONTRERA, Malena Segura. O mito na mídia. São Paulo: Annablume, 2000.
DEL PICHIA, Beatriz. BALIEIRO, Cristina. O feminino e o sagrado: a mulher na jornada do herói. São Paulo: Ágora, 2010.
ELIADE, Mircea. O mito do eterno retorno. Lisboa: Edições 70, 1969.
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
______. WILHELM, Richard. O segredo da flor de ouro: um livro de vida chinês. Petrópolis: Vozes, 2012.
PROPP, Vladimir. Morfologia do Conto Maravilhoso. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária Ltda, 2010.
VOGLER, Christopher. A jornada do escritor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.