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MARIA MARTINS, ARTISTA E MULHER

Documentários desvendam pessoas, fatos, épocas. Abrem caixas em que se escondem riquezas. É assim, o documentário MARIA, NÃO ESQUEÇA QUE EU VENHO DOS TRÓPICOS, que descreve vida e obra de uma escultora, gravurista, pintora, desenhista e escritora brasileira. Esposa de embaixador do Brasil. Mulher extraordinária, que soube estar entre esses papéis (um tanto difíceis de contemporizar) no começo do século XX.

UMA VIDA DE MUITOS PAPÉIS

Esse documentário (direção de Francisco C. Martins e Elisa Gomes), apresenta uma quantidade enorme de entrevistas com historiadores, artistas, familiares da artista e especialistas do mundo das artes, além de imagens das obras de Maria (filmes e fotos). Além disso, o bom uso da linguagem do cinema e muita sensibilidade realizaram um filme lindo. Aquela sensação meramente jornalística que temos de documentários passa longe.

No entusiasmo, segui minha curiosidade. Li uma biografia de Maria Martins e andei por conteúdos na internet.

Maria nasceu em Campanha( 1894) e morreu no Rio de Janeiro (1973). Separou-se do primeiro marido, o historiador Otávio Tarquínio de Sousa, com a desaprovação da família, o que não deve ter sido fácil naquela época. Essa rebeldia, custou-lhe a perda da guarda da filha.

Seu segundo marido foi o diplomata gaúcho Carlos Martins. Com ele, viveu parceria de objetivos e modo de vida. No papel de esposa de embaixador, ela viveu no Japão, Europa e nos EUA e participou de atividades sociais e culturais, papel que desempenhava bem com sua beleza e personalidade vibrante.

Na Bélgica estudou com Oscar Jespers. Em Washington com Jacques Lipchitz. Quando monta um ateliê em Nova York, começa uma fase de dedicação intensa a sua atividade artística. Participou de mostras coletivas e em 1941, ganha uma exposição individual em Washington.

Nessa época, trazidos aos EUA pela guerra na Europa, conhece André Breton e, a partir dele, entre outros Piet Mondrian e Marcel Duchamp (com quem teve um relacionamento amoroso). Em contato com todos, ela soube se dividir entre os compromissos de embaixatriz e os parceiros de sua vida de artista.

Quando surgiram dificuldades para esculpir, começou a escrever artigos para o Correio da Manhã e livros sobre a China, a Índia e Nietzche. Elaborou assuntos como religiões e mitos que se fizeram presentes em sua obra de escultora.

Em percurso de mais de sete décadas, múltiplas expressões. Mas, a escultura foi a mais produtiva e mais presente no documentário.

A OBRA

Embaixatriz e escultora, ela construiu uma obra que já ganhou sala especial na Bienal de SP em 1998; retrospectiva em Nova York (1998), cujo catálogo traz textos de André Breton, Micjel Tapie, Amedée Ozenfant e Murilo Mendes; biografia em 2004; retrospectiva no MAM-SP pelos quarenta anos de seu falecimento (2013). Este documentário amplia a divulgação de sua obra e importância.

Suas esculturas são formas intensas, tocadas por uma tensão emocional expressas em torcidos e retorcidos que impressionam. A própria Maria qualifica suas formas como deusas e monstros.

Maria Martins era “uma mulher de força extraordinária” e expressa esse vigor e erotismo em suas peças. Suas figuras apresentam mãos e pés “que têm fome de espaço”, de acordo com um entrevistado. Falam de desejo e de uma fêmea devoradora.

A artista traz para suas formas uma energia selvagem junto a especial criatividade. Tendo entrado em contato com a Amazônia, incorporou seus mitos e suas divindades, “seu animismo e sua fecundidade tropical”.

Há inquietação e ousadia. Podem ser, sim, formas que perturbam quem as observa por indicarem experiências humanas e misteriosas. É assim a escultura de Maria Martins: representa forças da natureza humana que gritam e nos mostram o que nem sempre é claro na existência humana.

Uma de suas peças que marca mais claramente esse aspecto quase primitivo é “O impossível” de 1946 que mostra duas criaturas possivelmente uma feminina e outra masculina, com cabeças em forma de tentáculos ameaçadores uns na direção dos outros.

Os especialistas nas artes identificam nessa obra o processo da atração sexual e da ameaça de morte. Talvez exista nele a expressão do amor como impossível. As formas se tocam e se repelem, contrapondo contato e perigo. Talvez essa peça represente o relacionamento entre ela e Marcel Duchamp.

Com charme e elegância foi esposa de embaixador, cumprindo todos os papéis sociais. E também foi a artista talentosa e com obra de repercussão internacional. Assim foi Maria, por quem Duchamp se apaixonou conforme demonstram as cartas que ele escreveu depois que ela voltou ao Brasil e que são lidas no documentário. Esse amante saudoso talvez tenha sido o parceiro na arte. Mas isso é apenas uma suposição da minha imaginação.

Pergunto-me como teria sido o relacionamento de Maria com Duchamp. Pelo documentário ficamos sabendo que a influência de um na obra do outro foi grande. Do ponto de vista pessoal, ela manteve seu casamento e família. Ele escreve cartas suspirando longamente seus desejos não mais preenchidos e sua saudade, os resmungos pela distância, a esperança de um novo encontro. Tudo o que os amantes sofrem em delicadas cartas de amor.

Essas paragens mais pessoais me fazem imaginar como Maria Martins conseguiu ser sensível e delicada para cumprir os papeis sociais e sua agenda de artista.

O crítico de arte Jayme Maurício (1926 -1997) diz a respeito dela: “Maria foi a personalidade que, sem abdicar jamais de sua feminilidade, representou no Brasil moderno do século XX tudo o que significou o surrealismo, na arte da escultura, na literatura, no sonho, na psicanálise, nas ciências, na política, no erotismo, na eterna busca do “Eu” e do “outro “, desde a natureza pujante da Amazônia à estratificação da mulher e sua atuação decisiva na virada do século”. Incrível, não é mesmo?

Essa obra prima de nosso cinema, esse documentário, consegue nos oferecer uma dimensão mais ampla de sua presença. Maria nasceu mineira e morreu mulher da arte e do mundo.

 

PS 1: Seguem o link para as entrevistas do documentário de 2017 e a indicação bibliográfica da biografia lida. https://www.liligopro.com.br/maria (entrevistas)

Maria Martins, uma biografia . CALLADO, Ana Arruda. RJ: Gryphus; Brasília, DF: Ministério da Cultura; BH: CEMIG, 2004.

 

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