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LUCKY, UM SORRISO APENAS

Podemos até pensar que esse filme é uma espécie de faroeste por inúmeros aspectos. Na verdade, sem tiros e sem mocinha. Mas temos botas, chapéu surrado e saloon com prostituta. A (linda) sonoplastia traz gaita, claro! Uma homenagem ao estilo? Mas, principalmente, assistimos a uma reflexão a respeito dos significados das palavras, da amizade, da vida e da morte. E do poder de um sorriso.

O VELHO E AFORTUNADO LUCKY

Lucky (2017), dirigido por John Carroll Lynch, tem Harry Dean Stanton (Paris, Texas) como protagonista e , entre outros, David Lynch (normalmente mais discreto) em papel memorável.

O telefone vermelho misterioso em cima da mesa.

O filme mostra a rotina do dia-a-dia de Lucky, um ateu ranzinza e de pouca fala, ex-soldado da Segunda Guerra. Seu despertar e ligar o rádio, a higiene pessoal, a ginástica. Seus cuidados com a aparência e caminhadas pela cidade. Palavras cruzadas e café. Assistir à TV para programas de jogos com auditório. Falar ao telefone vermelho.

Uma vida organizada e que se desenrola tranquilamente até que um dia ele cai ao chão. Desmaio? O médico depois de exames lhe dá o diagnóstico: Velhice. “Não vou lhe proibir o cigarro , o que isso sim, poderá lhe fazer mal”.

Um tanto desconsolado, o caubói volta à sua rotina. Mas algo aconteceu. Uma crise se instalou. Continua fazendo suas longas caminhadas até a vila e fumando muito em todos os lugares. Em todos não. Há uma casa noturna que o teria expulsado por ter acendido um cigarro visto que é proibido. Será verdade? Segundo Lucky, não é essa a verdade.

PALAVRAS CRUZADAS

Ele anda até a cafeteria e senta para um café e palavras cruzadas. Envolve os conhecidos em seu jogo com as palavras. Como questiona as palavras em um exercício aplicado às experiências de vida, é jogo sério.

Á noite, o papo com amigos. E o Bloody Mary!

À noite, no bar, toma seu Bloody Mary e troca ideias. E esse universo limitado é vivido assim de forma simples e inteligente, contando com velhos amigos. A Elaine, dona do saloon, ops! do bar, conta como passou a ser respeitada em um mundo de homens. Howard conta como foi afetado pelo animal de estimação (um cágado).

Trata-se de um filme de diálogos, em que se delineiam fases da vida e afetos, tudo o que dá significado à vida. Foi assim com o soldado no restaurante relatando cena de guerra e o encontro com o sorriso inexplicável de uma criança. E a confissão de Lucky com a morte de um rouxinol, que parou o canto e fez “baixar o silêncio no mundo. Foi devastador ”. Esses e outros são diálogos essenciais.

E assim, vamos nos afeiçoando a esse homem comprido, magro e de poucas falas, já que para ele “o silencio é melhor do que conversa mole”. E ele se revelando aos poucos, desfazendo a imagem de homem duro. Na verdade, o quadro que temos dele é mais complexo do que qualquer descrição didática. Sendo cético, ao cair no chão em desmaio, geme “Jesus Cristo”!

Cantando em espanhol, com mariachis…

E ele vai se abrindo a uma gama de emoções que passa pela confissão de medo (da morte?). talvez estejamos assistindo a um descongelamento desse caubói.
Até que, em festa de aniversário, ele canta de improviso uma canção de amor, em espanhol junto dos mariachis. Teria ele se lembrado de uma história de amor em sua vida?

Não podemos medir o tamanho das mudanças que ocorreram dentro dele a partir da crise pós desmaio. Mas, podemos identificar delicadezas e sinais. Ao final do filme, ele olha para a entrada do espaço noturno Eve´s e, enfim, a câmera nos mostra o que tem dentro. Um cenário verde, de águas e cantos de pássaros. Como se, agora ele pudesse olhar esse pedaço de paraíso perdido sem o amaldiçoar com xingamento, já que ele foi afastado desse local por uma briga de sua responsabilidade.

A câmera abre alguns segredos e guarda outros. Não ficamos sabendo quem é a parceria do telefone vermelho. Estratégias do diretor e do roteirista. Interessantes detalhes.

Nos instantes finais, Lucky pára em frente ao pé de cactos e nos dá um sorriso que alivia e amansa a rudeza de sua face. Um sorriso que nos lembra a história da criança que em meio à guerra, sorri simplesmente.

Andando em meio aos cactos.

Por que ele seria um afortunado? Pelo trabalho na cozinha de um navio na Segunda Guerra? Pela aceitação do realismo na vida? Por isso tudo? O filme pode parecer lento, mas é cheio de significados, silêncios e de emoção. Fala de profundidade e de velhice feliz.

Enquanto isso o cágado que é animal de estimação de um amigo e tem sido dado como perdido, está bem perto, andando no sentido inverso daquele do início do filme. Ele abriu e agora fecha a narrativa. Surpreendente e correta.

É o momento do nosso sorriso.

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