“Ninguém solta a mão de ninguém” é uma convocação que fará sentido enquanto houver injustiça social, sobretudo relacionada à ocupação e à representação feminina em esferas de poder político, profissional, econômico, social, cultural, educacional. Para muitas mulheres (a maioria delas), a sentença faz sentido, pois em seus cotidianos superam violências de diversas origens, além do sacrifício que é lutarem pelo direito às suas escolhas em contextos quase sempre muito desiguais em relação aos homens. Como manter as mãos unidas, se estamos exaustos e exaustas? Trouxe para coluna dois livros – um lançamento e outro título que se tornou cânone obrigatório – sobre feminismo, os quais acredito promoverem uma visão crítica e teórica atual do representa ser feminista, desafios e conquistas. Tratam-se de narrativas construídas em primeira pessoa por autoras oriundas de países periféricos, cujos estudos e repercussão adquiriam status cosmopolita, tendo como ponto de partida a importância da consciência sobre a ideologia de gênero.
Lançado este ano pela Editora Nós, O contrário da solidão – Manifesto por um feminismo em comum, de Márcia Tiburi, promove um debate amplo e profundo sobre conceitos do feminismo e sua aplicação prática na vida de todes. Para além de um ideal e de um conjunto de teorias, a filósofa aponta para o perigo de ficar apenas no discurso ao invés de se tornar uma ação ético-política responsável. Por isto, acredita que é fundamental a auto-consciência de onde a luta por direitos e democracia deve chegar, caso contrário se perderá em meio à constante ameaça do patriarcado estrutural.
No livro o debate sobre o feminismo é desdobrado em diversas esferas, como a divisão de trabalho entre homens e mulheres baseada em diferenças sexuais. Chamo a atenção para o conceito de patriarcado o qual, segundo a autora, o feminismo pretende descontruir sua sustentação, formada por uma base de verdade absoluta na qual existem dois sexos normais, sendo masculino superior ao feminino. Isto se reflete, por exemplo, na construção e na expressão dos gêneros. Márcia remete à Judith Butler e afirma que a construção do gênero ocorre ao longo do tempo, na expressão da sexualidade, alimentação, imagem, espiritualidade, linguagem etc. Quantos e quantas de nós conseguimos ter a noção de que somos, de fato, a escolha consciente de nosso gênero?
O feminismo é um elo de irmandade entre as mulheres e também entre homens que se reconhecem feministas. Ajuda a desconstruir crenças históricas como a rivalidade entre mulheres, assim como a misoginia. Quando você, leitora, quiser dar nome àqueles que nos chamam de loucas, instáveis, desprovidas de confiança, inimigas, o termo é misógino. O lugar de fala feminino ainda é uma luta; historicamente as narrativas, os saberes e a cultura foram contados por homens. Por isto, também, é tão difícil lembrar rapidamente uma referência feminina em tecnologia, ou em outros ramos da Ciência, quando somos questionados. Sempre existiram, mas foram apagadas propositadamente pelo patriarcado. Márcia Tiburi reforça que o lugar de fala é uma expressão de poder.
Ao longo das décadas surgem ondas de feminismo, estamos atualmente naquela que é considerada a quarta onda, o ciberfeminismo. Márcia Tiburi destaca a relevância do feminismo interseccional relacionado a questões de raça e classe social no avanço de práticas feministas voltadas ao género e a expressão da sexualidade. Pensar no feminismo interseccional representaria, então, o “ninguém solta a mão de ninguém”: a soma de lutas históricas que custaram imenso sofrimento se torna algo muito forte no coletivo ao ponto de legitimarem os lugares de fala.
O contrário da solidão tem algo precioso: o percurso de construção de Márcia Tiburi enquanto feminista. Um grande ponto de empatia entre autora e leitores; eu, por exemplo, me reconheci em alguns momentos da vida de Márcia. Também tive uma mãe que sem se considerar feminista foi incentivadora dos meus estudos para me libertar da opressão de papeis a serem cumpridos, a fim de obter a liberdade de escolha. Acho muito importante acompanhar a narrativa de construção de Márcia enquanto mulher, o processo de descoberta e de consciência, ao longo dos anos, dissociado dos dogmas do patriarcado.
O outro livro que gostaria de sugerir a leitura a você, independente do gênero no qual se reconhece, é bastante conhecido: Sejamos todos feministas, de Chimamanda Ngozi Adichie. Lançado há seis anos no Brasil, permanece atual. Trata-se de uma adaptação de uma palestra em um TEDxEuston (conferência anual em torno da África), marcada por frases impactantes e fortes. Uma aula de força, determinação, resiliência e espírito crítico para analisar o feminismo para além do ponto de vista pessoal, que já é em si mesmo rico. Uma premiada autora de ficção, cuja obra Meio sol amarelo foi adaptada para o cinema, traduzida em mais de trinta idiomas. Nigeriana, vive entre seu país e os Estados Unidos.
No lugar de fala de uma intelectual negra, Chimamanda imprime uma visão sobre feminismo que, em diversas passagens, complementa e vai ao encontro de questões levantadas no livro de Márcia Tiburi. O termo “feminista” foi marcado por estereótipos que surgem, muitas vezes, em ambiente familiar, fruto de uma construção histórica masculina pautada na liderança baseada em força física. A autora chama a atenção de como meninas são criadas a se preocuparem no que meninos e homens pensam a seu respeito, assim como o nível de exigência de um tipo de masculinidade afeta a expressão de uma masculinidade em sentido mais amplo e livre.
A educação de meninas pautada na rivalidade entre mulheres no mercado de trabalho e também pela atenção masculina, a vergonha da condição feminina expressa em situações como fechar as pernas e ter cuidado com decotes apontam para um desejo reprimido que explode em raiva. A autora propõe que crianças sejam criadas não a partir da perspectiva do gênero, mas de seus talentos individuais.
O feminismo é, segundo a escritora, uma questão de direitos humanos e feminista é a pessoa que advoga pela igualdade social, política e econômica para os sexos. Trata-se de uma leitura curta, mas fundamental para o debate sobre a construção de uma sociedade sadia.
O contrário da solidão – Manifesto por um feminismo em comum
Márcia Tiburi
Editora Nós
112 páginas
Sejamos todos feministas
Chimamanda Ngozi Adichie
Companhia das Letras
64 páginas