– Cortem as cabeças!
Quem não se lembra dessa icônica frase do filme Alice no País das Maravilhas (1951), que foi filmado em live action em 2010, dirigido por Tim Burton? Ou, para os leitores vorazes como eu, quem leu o livro homônimo de Lewis Carroll, de 1865?
Nessas obras, a personagem Rainha de Copas é irascível, agressiva, e a única solução que encontra para os momentos em que é contrariada é a guilhotina. Entretanto, o Rei de Copas, mais razoável, vive desfazendo seus desmandes – e a Rainha nem percebe, pois é uma personagem de memória tão curta quanto o pavio…
Muitas pessoas, devido ao verbo cortar, a associam à Rainha de Espadas, cujo emblema é justamente a única arma do baralho que não serve como ferramenta. Convenhamos, ninguém descasca uma laranja com uma espada. A espada serve ao ritual e ao combate, mas não tem função no cotidiano.
Falaremos mais sobre isso, eventualmente. Mas hoje não é dia de Espadas – que pode ser nossa conversa seguinte, se você, leitor, quiser. Nosso papo hoje é sobre Copas e sobre o personagem bíblico associado à Dama desse naipe: Judite.
A história de Judite é contada no livro bíblico homônimo, que possui 16 capítulos. Judite era viúva, jovem e muito bonita. Diante da iminência de um ataque à sua tribo pelas tropas de Nabucodonosor, decidiu visitar o acampamento dos inimigos, contando apenas com um cesto cheio de alimentos – para que não se tornasse impura comendo os alimentos dos infiéis – e uma serva, cuja presença é fundamental para o seu plano.
Diariamente, Judite ia ter com Holofernes, o general babilônico, compartilhando de sua companhia, mas não de sua mesa e muito menos de sua cama. Assim, cada vez mais Holofernes se via enredado pelos encantos dessa mulher. Certa feita, Judite serviu a Holofernes uma série de alimentos bem temperados, o que levou o general a beber mais que de costume, vindo a adormecer profundamente. Aproveitando o momento, Judite o decapita, usando sua própria espada, e coloca a cabeça, com o auxílio de sua serva, no cesto em que carregava suas frutas, e volta para a tribo, vitoriosa por ter lançado mão não da violência clara, mas da astúcia velada.
A cena de Judite decapitando Holofernes é um tema clássico barroco, tendo sido representado mais de uma vez no ateliê de Caravaggio (1571-1610), tanto pelo próprio (1598-1599) quanto por Artemisia Gentileschi (1593-1656), que explorou o tema entre 1614 e 1620. Esses pintores rompem com o retrato atributivo, que identifica Judite a partir dos atributos da espada e da cabeça decapitada; para esses pintores, o momento da decapitação, com Holofernes ainda se debatendo, é o foco da representação.
Essa personagem, astuciosa, heroína, vencedora, é representada no baralho francês na figura da Corte Dama de Copas. E essa Dama de Copas possivelmente foi a inspiração de Lewis Carroll. E a obra de Lewis Carroll foi animada pela Disney em 1951. Em 2010, Tim Burton dirigiu a versão live action.
Em 2020, nós trilhamos o caminho que inicia em um livro bíblico e termina na arte da Disney, tendo como pano de fundo uma carta de baralho.
Até a próxima.