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Anjo encarnado

No fundo, no fundo, no fundo sou um vagabundo. Um vira-lata de raça, raposa no dia de caça. Eu quebro o protocolo, me atiro no seu colo. Eu salvo sua vida quando você se suicida. Minha dor não dói, sou marginal, sou herói” (Vira-Lata de Raça, de Rita Lee & Beto Lee)

Adoro ler biografias, principalmente de artistas que admiro. Conhecer suas trajetórias, suas histórias contextualizadas com o tempo e as personalidades de sua época. Compreender como suas obras foram geradas, suas batalhas, sonhos, decepções e sucessos.

No momento, estou lendo o livro “Ney Matogrosso – Vira-Lata de Raça”, um belo trabalho de memórias desse grande artista. A pesquisa, interlocução e organização é de Ramon Nunes Mello, que fez o convite a Ney Matogrosso propondo-lhe a olhar para seu próprio percurso dentro e fora dos palcos.

O título foi escolhido pelo próprio cantor, retirado da canção “Vira-Lata de Raça”, de Rita Lee e seu filho Beto Lee, por considerar como um de seus melhores retratos. E Ramon Mello considera que “acompanhar a trajetória de Ney Matogrosso, diante de suas reminiscentes e fragmentadas memórias, é compreender o Brasil de ontem-hoje como a peça de um quebra-cabeça que se completa aos poucos”. 

O próprio Ney Matogrosso explica: “aqui neste livro vasculho minhas memórias para buscar o que considero valoroso, detalhes ainda não revelados, ou uma reflexão sobre um assunto, para, então, dar luz em primeira pessoa”.

Ele conta sobre sua infância, os vários lugares em que morou, a difícil relação com o pai, sua forte conexão com a natureza, sua ligação com arte em geral, sexualidade, o sucesso com “Secos & Molhados”, a trajetória solo, trabalhos com outros artistas, a intuição e a liberdade de sua postura cênica no palco. Ele explica como ele escolhe seu repertório: “Quando ouço uma nova música, me pergunto: ‘Eu teria feito essa canção? Posso cantá-la?’ Esse é o meu critério, tenho de gostar a ponto de cantar aquelas palavras. Gosto de risco, me interessam os novos artistas que estão surgindo”.

Outras facetas desse multifacetado Ney Matogrosso também são lembradas: ator de teatro e cinema, iluminador, figurinista, diretor musical e cênico. Um bicho do palco, uma personagem da cena.

E o tempo só vem mostrando como ele se mantém coerente com sua missão como artista, sua responsabilidade para o que acredita, o domínio e apuro técnico de sua voz rara e a não acomodação à caretice e à idade. Afinal, esse belo senhor está a caminho dos 78 anos de idade e ainda está com muitas ideias na cabeça e com muita energia para gastar e nos deliciar no palco. Sempre atento aos sinais.

https://www.youtube.com/watch?v=CBGFxbF0TnE

Nada melhor para encerrar esta dica de leitura, que o texto de Caio Fernando Abreu: “Ney foi o anjo enviado por Deus para que o brasileiro compreenda melhor sua louca identidade de homem-mulher unidos num só: pássaro e tigre, cobra e borboleta, miséria e esplendor. Muito além do bustiê, Ney Matogrosso parece uma tese de mestrado ao vivo sobre a ambiguidade deste país. Tê-lo entre nós nos deixa mais nítidos e felizes também, pois a clareza dele é bela e como ele é nós, épico e arquetípico, nos tornamos belos através dele e muito mais livres e muito mais nobres”.

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