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A TERCEIRA MARGEM – Todo dia é (era) dia de índio

“Salí a perderme en los bosques

de la imaginación (en eso ando aún)”.

Elicura Chihuailaf (poeta Mapuche)

                                                                        “Sueño Azul”

 

Dia 19 de abril, “Dia do Índio”…. Assim nos ensinaram na escola. Será?  Mas os índios só têm um único dia? Ou nenhum? E as mulheres, as crianças, a consciência negra, os trabalhadores, as mães, os pais, os enamorados? Apenas uma data fixa num calendário na parede? Mas também podemos usar essas efemérides para refletirmos um pouco sobre o significado que nós, individualmente e social, cultural, política, econômica e historicamente percebemos e manifestamos sobre a alteridade, diversidade, plurietnicidade e multiculturalidade das nossas sociedades. Hoje, a propósito, podemos pensar um pouco sobre os diversos e múltiplos povos indígenas, primeiros habitantes dessa terra.

Ainda é comum e não causa espanto para muitas pessoas a expressão “muita terra para pouco índio”. Ou então, a generalização corrente que coloca em um mesmo balaio povos indígenas de regiões, culturas e origens muito diversas, todos sob a denominação de índios, ou indígenas, ou povos originários e tantas outras classificações. Também há quem considere que os denominados índios só o sejam se vivem em aldeias no meio da floresta, longe do contato com as sociedades e culturas não indígenas. Ao saírem dessa condição de isolamento, ao migrarem para as cidades, estudando em escolas e universidades, usando roupas e bens de consumo dos brancos, perderiam automaticamente a condição de índios.

Mas, afinal, em nossos países convencionalmente chamados de americanos ou latino-americanos, quem seriam os povos indígenas que depois de mais de 500 anos de conquista e colonização europeias ainda buscam seu lugar ao sol, sua afirmação identitária em meio à diversidade e complexidade das sociedades contemporâneas? Os primeiros habitantes, culturalmente heterogêneos, com histórias de resistência e sobrevivência parecidas, mas com as peculiaridades de cada país e região onde têm presença física, estão sempre em movimento dentro das sociedades onde se inserem ou foram inseridos. Movimentam-se politicamente, socialmente, economicamente, culturalmente. Algumas vezes em conflito com as ordens pré-estabelecidas, em outras ocasiões assimilando marcas culturais externas ou negociando o seu espaço nas sociedades não indígenas, conquistado ou concedido.

A imaginação e a criatividade humana, com apoio também da ficção científica, projetaram um admirável mundo novo, com impressionantes avanços tecnológicos, onde o ser humano, senhor das máquinas e da natureza, seria o comandante rumo a um futuro de prosperidade e felicidade para todos. Mentes brilhantes impulsionaram as ciências e presenciamos, ao longo do século XX, avanços surpreendentes em tantos campos do conhecimento. Mas também fabricamos guerras modernas, tecnológicas e à moda antiga, destruímos como nunca a natureza, exploramos com voracidade os recursos naturais do planeta. Hoje, mesmo com todas as novas/velhas tecnologias, com a revolução informática e da microeletrônica, com a biotecnologia, nanotecnologia, com realidades virtuais, redes sociais e de informação/dados on-line, telecomunicações por satélites, ainda não conseguimos acabar com guerras insanas, conflitos fratricidas, nem distribuir solidariamente as riquezas geradas, nem vencer a fome ou doenças facilmente erradicáveis. Hoje, já quase duas décadas dentro do século XXI, nos instantes iniciais do terceiro milênio, ainda estamos dando passos incertos rumo ao desconhecido.

Parece que estamos no loop da montanha-russa, na imagem criada pelo historiador Nicolau Sevcenko[1] e que tão bem define o momento que vivemos. Depois de séculos de aceleração vertiginosa, desde a Revolução Científico-Tecnológica e Industrial, e de um século XX de mais aceleração e descobertas antes impensáveis, mas também de guerras e tragédias humanas sem precedentes, estamos agora suspensos de cabeça para baixo, sem saber o que virá pela frente.

Felizmente, ainda temos em nossas mãos – antes que seja demasiado tarde – a possibilidade histórica de frear a montanha-russa, vencer a “síndrome do loop”, voltar a por os pés no chão e caminhar. “Lutar para que as prioridades desse mundo globalizado se voltem para os homens, a natureza e a solidariedade”, concordando com Sevcenko.

A história da humanidade sempre foi uma história de encontros e desencontros, de fluxos migratórios movidos por guerras, por fome, por busca de novos horizontes e bem-estar. Hoje não é diferente. Estamos imersos em conflitos étnicos, religiosos, geopolíticos, econômicos, neocoloniais.

Todos os povos buscam seu lugar ao sol, seu direito à dignidade, seu pedaço de chão, sua casa, ainda que imaginária. Uns, desesperadamente, lançam-se ao desconhecido, deixam para trás suas raízes, emigram, tentam construir novos laços em terras estrangeiras. Outros permanecem e resistem, defendem seu território real e simbólico. Há os que acolhem os sem pátria e compreendem seu drama, há os que os rejeitam com violência xenofóbica. Também há os que são como exilados em seu próprio país, por exclusões e incompreensões diversas.

Deste nosso lado do mundo, entre histórias de exclusões e resistências no continente americano ao longo de mais de cinco séculos, os chamados povos indígenas, que hoje lutam para participarem de fato e de direito das sociedades pluriétnicas que se constituíram a partir das experiências coloniais, podem ser considerados autênticos sobreviventes. Resistiram física e culturalmente aos colonizadores, foram conquistados – mas também souberam conquistar – e são parte decisiva na formação das matrizes culturais, genéticas e espirituais das nações que surgiram aqui.

Nações germinais que deram origem a uma variante da humanidade conhecida como latino-americana, iniciada por “impérios mercantis salva-cionistas” ibéricos, no entender de Darcy Ribeiro[2], e da mestiçagem com os povos indígenas e os africanos escravizados, que resultaram em povos e culturas novos, dos quais o Brasil é certamente uma das mais completas traduções. “Uma nova Roma, uma matriz ativa da civilização neolatina. Melhor que as outras, porque lavada em sangue negro e em sangue índio, cujo papel, doravante, menos que absorver europeidades, será ensinar o mundo a viver mais alegre e mais feliz”, nas esperançosas palavras do educador, escritor e antropólogo em sua obra definitiva, O Povo Brasileiro.

Hoje é 19 de abril, mas todo dia é dia de índio. Para tod@s, um mundo onde caibam muitos mundos.

 

[1] SEVCENKO, Nicolau. “A corrida para o século XXI: no loop da montanha russa”. Companhia das Letras, São Paulo, 2001.

[2] RIBEIRO, Darcy. “O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil”

Cia. das Letras, São Paulo, 1995, pp.257-265.

 

A ilustração acima é reprodução de uma gravura do artista mapuche-chileno Santos Chávez (1934-2001). Trigal en una noche astral (2000). Os versos são do extenso poema “Sueño Azul”, do poeta mapuche Elicura Chihuailaf (1952). Os dois foram grandes amigos.

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