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A segunda morte de Luzia

RIO DE JANEIRO RJ 02 09 2018 Um incêndio de proporções ainda incalculáveis atingiu, no começo da noite deste domingo (2), o Museu Nacional do Rio de Janeiro, na Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, na zona norte da capital fluminense FOTO Tania Rego /Agencia Brasil

Tristeza. Indignação, revolta, dor. Frustação, impotência. Nós, brasileiros, fomos derrotados mais uma vez. E, infelizmente, não foi uma derrota futebolística, que também cala fundo na já combalida autoestima nacional, mas pode vir a ser superada no próximo campeonato mundial, mesmo que só daqui a quatro anos, ou oito, enfim. O incêndio que destruiu completamente o prédio histórico bicentenário, sede principal do Museu Nacional na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, e tudo de muito valioso que estava ali dentro, nos jogou na lona novamente.

Das chamas implacáveis ao desespero, choro e perplexidade de tanta gente que ali trabalhava e tinha 20, 30, 40 anos de vida e pesquisa ali depositadas e o combate incansável dos homens do Corpo de Bombeiros naquela noite e madrugada da tragédia, ficam muito mais que fumaça, escombros e lágrimas.

Entre os mais de 3700 museus que existem no Brasil, 60% públicos, o Museu Nacional é o mais antigo, considerado até então o maior museu de história natural e antropológica da América Latina, com mais de 20 milhões de itens. Também um museu universitário e de pesquisa, vinculado à UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Criado em 1818 por D. João VI durante o período em que a família real e a corte portuguesa viveram aqui, o palacete-sede do museu foi residência de um abastado traficante de escravos, depois adquirido pelo rei de Portugal em seu exílio em terras brasileiras e tornou-se residência oficial da monarquia, passando por várias gerações da família real, de D.João VI, o filho D.Pedro I até seu sucessor D.Pedro II.

Ali, em 1822, a princesa Leopoldina, casada com D.Pedro I, assinou o documento da proclamação da independência do Brasil, após seu marido ter declarado “independência ou morte”, o famoso “grito do Ipiranga” nas colinas à beira do riacho de mesmo nome, voltando de Santos e de passagem por São Paulo, perto de onde hoje está o Museu Paulista, mais conhecido como Museu do Ipiranga, administrado pela USP – Universidade de São Paulo, fechado à visitação desde 2013 para obras de restauração orçadas em R$ 100 milhões, dos quais apenas 3% foram levantados até agora, na expectativa de que possa ser reaberto para as comemorações dos 200 anos da independência, em 2022.

Naquela noite fatídica do domingo 2 de setembro, quando os bombeiros chegaram ao local para combater o incêndio que já tomava toda a parte frontal do prédio envolto em chamas, constataram que os dois hidrantes localizados nas laterais do edifício estavam sem carga, não tinham água nas tubulações. Fizeram uma manobra para bombear água de um dos lagos da Quinta da Boa Vista, enquanto caminhões-pipa eram enviados de quartéis da corporação, da CEDAE – a companhia de águas do Rio de Janeiro e até da Marinha. O prédio não tinha equipamentos ou alarmes anti-incêndio, detectores de fogo, portas corta-fogo separando os ambientes. Estava há muitos anos necessitando de reformas, de manutenção, com instalações elétricas precárias, com partes do edifício, sobretudo forros e tetos, com risco de desabamento. Várias salas de exposição haviam sido fechadas à visitação anos atrás por falta de segurança ao público.

Ao saber da tragédia, o bombeiro Rafael Luz, do Quartel de Copacabana, que estava em dia de folga, foi buscar seu equipamento no grupamento e rumou para o local para ajudar da maneira que fosse possível. Com um funcionário do museu, conseguiram salvar algumas peças cerâmicas e tentaram chegar até a sala onde ficava guardado o fóssil de Luzia, o crânio da mulher considerada a “primeira brasileira” da nossa história, com idade calculada por datações entre 11,5 mil e 12 mil anos e encontrada por arqueólogos nos anos 1970 na região de Lagoa Santa (MG). Mas, infelizmente, não conseguiram retirar do armário em chamas a urna de ferro, àquela altura incandescente, onde era guardado um dos maiores tesouros do museu e da arqueologia do país. Em relato nas redes sociais e ao portal G1, Luz contou sobre a tentativa frustrada e as queimaduras que teve nas mãos.

Junto com outros fósseis humanos e milhares de fósseis de dinossauros e várias espécies de animais extintos, com obras de arte de muitos povos originários do país, acervos de gravações e registros sobre línguas indígenas que não existem mais, múmias e relíquias egípcias da época dos faraós, cerâmicas, móveis e objetos da família real e do período imperial, documentos raros, coleções de animais vertebrados e insetos, Luzia morreu pela segunda vez. Só o meteorito Bendegó, o maior já encontrado no país, no século XVIII no interior de Minas Gerais, resistiu ao fogo por ter ferro e outros metais resistentes a altas temperaturas em sua composição.

Passada a tragédia maior, agora no rescaldo do incêndio será possível avaliar o tamanho real das perdas ocorridas, calculadas aproximadamente em 90% do acervo. Para além de todo o desastre material, perdeu-se a memória, a história, o passado, presente e futuro, com objetos e documentos que não existirão mais e que eram únicos, de valor incalculável, matéria-prima para centenas de pesquisas, estudos, dissertações e teses em andamento dos docentes-pesquisadores, mestrandos e doutorandos dos cursos de pós-graduação do museu, uma instituição museológica, de estudos, ensino, pesquisas e extensão.

Somos todos um pouco culpados por essa tragédia anunciada? Sim e não.

Sim, porque em vários níveis, direta e indiretamente, não estamos sabendo valorizar e cuidar do patrimônio material e imaterial, dos museus, da riqueza e da diversidade cultural do nosso país, dos nossos povos ancestrais e da sociedade multiétnica e pluricultural que formamos ao longo de séculos da existência política e sociocultural do Brasil. Há exemplos de sobra, infelizmente, do abandono e das condições precárias em que muitos desses patrimônios se encontram pelo país afora.

Não, porque como cidadãos pagamos nossos impostos e elegemos representantes nas esferas municipais, estaduais e federais, nos poderes legislativo e executivo para que, entre tantas outras incumbências da democracia representativa, administrem com eficiência e transparência, com inteligência e criatividade, os bens nacionais, sejam eles em um pequeno município ou nas grandes cidades e os mais variados patrimônios históricos, arquitetônicos, artísticos e culturais da nação. E na educação, na saúde, moradia, emprego, segurança etc etc etc. Mas também estamos falhando na escolha desses representantes e na fiscalização dos seus atos.

Há culpados por todo esse estado de coisas deplorável? Sim, muitos, em vários níveis e esferas de poder e que tinham a obrigação de atuar para que tragédias como essa do Museu Nacional fossem evitadas. Não só para correrem aos holofotes e câmeras de TV, para as várias mídias, agora que o pior aconteceu, tentando justificar patética e irresponsavelmente o injustificável, o inexplicável, liberando recursos e prometendo verbas com uma agilidade que não demonstraram antes do desastre. Temos muito o que repensar e agir.

Alguns links sobre o assunto:

https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/05/politica/1536160858_009887.html

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/09/04/bombeiro-diz-que-se-queimou-ao-tentar-resgatar-luzia-no-museu-nacional.ghtml

https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2018/09/03/interna_internacional,985737/luzia-a-primeira-brasileira-morreu-no-incendio-no-museu-nacional.shtml

https://mdemulher.abril.com.br/cultura/quem-era-luzia-a-brasileira-de-11-mil-anos-queimada-no-museu-nacional/

 

 

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