Este filme ganhou o Oscar de Melhor Filme Internacional em 2014. Este já seria um motivo, mas vale a pena visitá-lo nesta época em que estamos experimentando transformações inesperadas e profundas. Neste filme, assistimos a uma personagem cansada em uma sociedade perdida. Como a personagem reagirá dentro da crise que cresce em sua vida e que indica a diluição de todos os sentidos ?
A Grande Beleza, do diretor Paolo Sorrentino, é daqueles filmes que nos impressiona, mas não podemos rapidamente identificar o motivo. A complexidade dessa obra tem gerado desde a época de seu lançamento em 2013, diversidade de opiniões, não só pela narrativa, mas também pela linguagem cinematográfica utilizada. Sempre é tempo para falar de obras maiores do cinema. Leia o artigo. Que tal manifestar sua opinião?
TEXTO E CONTEXTO: O MUNDANO
Jep Gambardella (Toni Servillo) confessa logo no início de sua apresentação que nasceu para a sensibilidade e para ser escritor. Escreveu um livro só e por isso algumas vezes é cobrado pela continuidade dessa vocação interrompida, à qual ele não dá muita atenção embora não lhe falte o estímulo de sua editora, uma anã inteligente e interessante.
Rico e bem sucedido, celebra seus sessenta e cinco anos em meio a uma grande festa. Repete nesse aniversário o que experimentou a vida toda: um reinado de festas e encontros fortuitos.
Na verdade, tem outras questões internas. Confessa: “Quero esquecer meu aniversário.” Logo depois tem a notícia da morte de seu primeiro amor de adolescente. Vive então, um retorno a esse passado juvenil bem diferente do momento atual, em que a beleza da mulher não é mais suficiente para sua satisfação. Pessoas próximas, como a amiga anã e sua governante percebem que ele está diferente e pensativo.
Enquanto se permite viver somente o que lhe agrada, acompanha as histórias dos amigos próximos, juntando talvez argumentos para perceber a miséria da vida em um mundo habitado por falatório inútil e vazio. Acompanhamos algumas histórias próximas a ele e em meio a humor e ironia ácida, críticas à intelectualidade arrogante e a questões ligadas à Igreja e ao declínio da nobreza italiana.
Observamos essa sociedade a usufruir da arte como espetáculo, misturada a sacrifício e dor, de forma insensata. Paralelamente a esses espetáculos estúpidos de uma sociedade em decadência, observamos explícita homenagem a Roma em toda sua beleza.
Trata-se de um rico discurso perpassando todo o filme. Será essa a grande beleza a que o título do filme se refere?
A METÁFORA E A BELEZA INTOCÁVEL
Tais aspectos da vida de Jep aos 65 anos são narrados de maneira pouco convencional. Junto a eles, coisas estranhas acontecem: cenas em câmera lenta, um teto que vira mar, uma caixa de chaves que abrem portas a espaços preciosos, um mágico que faz desaparecer uma girafa. São ocorrências inverossímeis e que podem incomodar alguns de nós se não pudermos estabelecer a relação entre tais acontecimentos e a linha da narrativa. Farão sentido ou não, dependendo de nosso repertório e de preferências cinematográficas.
A linguagem do cinema tem espaço para a ruptura com a lógica e a ordem linear. Nesse caso, abre-se uma janela para uma realidade simbólica, que já é anunciada na epígrafe do filme: Viajar é útil, exercita a imaginação. / O resto é desilusão e fadiga.
A partir desta citação, o diretor nos convida para essa viagem que implica em aceitação dos recursos cinematográficos, abertos à metáfora. Sem nos darmos conta, ela sutilmente vai se colocando, tornando possível transitar entre o lógico e o inverossímil, sem que haja limites entre eles. Cabe a nós aceitar essas novas regras do jogo do cinema para usufruir dessa obra.
É dessa forma inconvencional que o diretor narra como Jep elabora a mudança em sua vida, observando o que está a sua volta e dentro de sua própria natureza. A personagem descobre assim o que fez e o que faltou fazer. Não tendo encontrado a grande beleza que buscava, calara-se, sem mais palavras a dizer. Interrompera sua vocação.
Mas, passa por mudanças, aceita a inexorabilidade do tempo e da morte e percebe vislumbres da beleza, escondidos no blá-blá-blá do mundo. Conclui que sua insatisfação permanecerá como tal, sem ser resolvida. Mas, isso não estancou o fluxo de sua sensibilidade.
Há ainda um viés de sonho e de possível beleza, no contato de uma visão de um mar que se abre no teto. Há indícios dela também no testemunho e na santidade de um sopro que faz pássaros em revoada. Ele percebe vestígios do belo no feio e do eterno no passageiro.
Sinais do belo em tudo o que pode ser alívio para a devastação de uma vida sem sentido. É fora do falatório mundano que se encontra tal sentido, em pequenos gestos como no som da água, nas brincadeiras infantis, na delicadeza de uma freirinha, na cena de beijo entre namorados, nas formas das esculturas e nas luzes-sombras de pinturas, na primeira ou na última experiência de amor.
Platonicamente intocável e insustentável, assim é a grande beleza para Jep. Mas há outras possibilidades sutis, que podem ser percebidas por aberturas da fantasia.
Houve uma volta ao passado para sentir o que foi esquecido e eliminado. Em sua caminhada sempre em busca da grande beleza, há razões escondidas nesse retorno. Sutil, aí está a revelação do sentido. Um sorriso e seu discurso final prometem que outro romance será escrito.
Assim, ele recoloca sua busca. Basta fechar os olhos e estar do outro lado da vida. É tudo um jogo. Bem próximos, indícios do reencontro com um sentido para a vida, junto à Beleza.